Comissão Permanente / Temporária
TIPO : DEBATE PÚBLICO

Da VEREADORA MONICA CUNHA

REALIZADA EM 10/09/2023


Íntegra Debate Público :

ÍNTEGRA DA ATA DO DEBATE PÚBLICO REALIZADO EM 9 DE OUTUBRO DE 2023

(Combate ao racismo: casos de desaparecimento forçado no Município do Rio de Janeiro – Políticas de identificação e atendimento psicossocial aos familiares)

Presidência da Sra. Vereadora Monica Cunha, Presidente.

Às 10h19, na Sala das Comissões Vereador Ary Barroso, em ambiente híbrido, sob a Presidência da Sra. Vereadora Monica Cunha, tem início o Debate Público com o tema: “Combate ao racismo: casos de desaparecimento forçado no Município do Rio de Janeiro – Políticas de identificação e atendimento psicossocial aos familiares”.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Bom dia a todos e todas. Em primeiro lugar, eu quero agradecer a presença de todos, todas e “todes” nessa Casa, na qual eu estou como vereadora, desde 2 de fevereiro de 2023. Então, a gente vai abrir mais uma escuta pela Comissão Especial de Combate ao Racismo.
Nos termos do precedente regimental número 43/2007, dou por aberta a Reunião da Comissão Especial instituída pela Resolução número 1590/2023, com a finalidade de analisar as desigualdades e seus impactos para a população da Cidade do Rio de Janeiro, bem como as responsabilidades do Poder Público e propor políticas públicas visando a prevenção ao combate e a superação do racismo.
A Comissão Especial está assim constituída, Vereadora Monica Cunha, Presidente; Vereadora Thais Ferreira, relatora e Vereador Edson Santos, membro. Para constatar o quórum necessário para a abertura da Reunião, farei a chamada dos membros presidentes.
Vereadora Thais Ferreira.
Vereador Edson Santos.
Não tendo sido constatado o quórum necessário para a abertura da Reunião convocada pela Comissão, informo que realizaremos, sob a minha presidência, um debate público com o tema combate ao racismo: casos de desaparecidos forçados no Município do Rio de Janeiro, políticas de identificação e atendimento psicossocial aos familiares.
A Comissão Especial de Combate ao Racismo estruturou o seu trabalho em cima de uma premissa. O racismo é estrutural no Brasil e por isso deve ser identificado em cada ação estatal antes de ser erradicado.
A partir desta concepção, desde maio de 2023, estamos promovendo encontros como este, denominados escutas temáticas, nos quais buscamos analisar as diferentes políticas públicas, através de uma lupa antirracista, identificando os traços de racismo em sua estrutura, bem como ouvindo propostas que pesquisadores profissionais, usuários desta política e seus familiares, para a superação deste panorama.
Feita esta breve apresentação, esta escuta temática tem como objetivo analisar os dados acerca da problemática dos desaparecimentos e buscar, com base nos relatos dos familiares e pessoas desaparecidas, especialistas e dos responsáveis pelas políticas de localização destas vítimas, a consolidação de políticas públicas que permitam o enfrentamento do problema, o cuidado aos familiares e às vítimas e a devida reparação.
Importante destacar que o desaparecimento forçado já foi política deste Estado e que estes crimes contra a humanidade praticados no período da ditadura continuam impunes, mesmo havendo inúmeras provas e evidências contra seus agentes.
Este fato, sem nenhuma dúvida, contribui para que hoje agentes das forças policiais e grupos paramilitares continuem a adotar este crime, como veremos nos relatos de familiares de vítimas da ditadura após a redemocratização. Atualmente, o Brasil conta com o sistema nacional de localização de pessoas desaparecidas, que possui mais de 85 mil casos, dentre os quais 54% são pessoas negras.
É com base nesses dados que optamos por fazer essa escuta temática.
Gostaria de agradecer a cada um e a cada uma dos presentes parceiros de longa data aos quais posso falar a partir de agora. A dinâmica de hoje será a seguinte: cada convocado terá sete minutos de fala.
Eu quero chamar para compor a Mesa, com muita honra e orgulho de ter chegado aqui, mas ter tido a contribuição de todas essas pessoas que, ao longo do tempo estiveram comigo nas trincheiras, na luta por direitos humanos, na luta sobre a vida.
Então, eu quero chamar a Senhora Victória Grabois, familiar de pessoas desaparecidas na Ditadura Militar e militante do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro; Senhor Lucas Pedretti, pesquisador; Senhora Aline Leite, irmã de Cristiane, filha de Vera, das Mães de Acari, que está on-line; Senhora Izildete Santos da Silva, mãe de Fábio Eduardo Soares Santos Souza, desaparecido em 2003; Senhora Michelle Lacerda, do movimento “Cadê o Amarildo?”; Senhora Maria Inêz Cardoso Magda Magalhães, da ONG Rio de Paz; Senhor André Luiz de Souza Cruz, representante do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro; Senhor Luiz Henrique do Programa SOS Criança Desaparecida da Fundação para Infância e Adolescente, FIA-RJ.
Agradeço imensamente a presença de todos. Eu acho que os únicos que eu estou conhecendo hoje são do Ministério Público e do SOS da FIA. A menina também que está representando o Rio de Paz a gente já se viu antes, mas os demais como Lucas, Victoria, Michelle, dona Izildete a gente está em uma militância nesse decorrer de 20 anos de pé no chão, de microfone na mão, lutando pela vida. Já fui homenageada com muita honra pelo Tortura Nunca Mais, no último ano de vida do meu filho.
Eu já lhe falei e eu sei que nunca é demais falar de novo que aquele foi o último momento do meu filho na terra, quando eu recebi em março a Medalha Chico Mendes pelo Tortura Nunca Mais. O meu filho estava presente nessa homenagem e a companheira dele da época estava grávida do meu neto, que completou, agora em agosto, 17 anos.
Então, o Tortura Nunca Mais para mim, além de tudo, além de todo o trabalho, de toda a militância, do entendimento, dos desaparecidos de ontem e de hoje, tem esse querer familiar e emocional por conta de ter sido o último ano do meu filho, e de ele estar junto nessa homenagem. Então, muito obrigada, Victória por isso.
Eu inicio falando para vocês que essa Comissão nasceu aqui nesta Casa quando tomei posse, agora no dia 2 de fevereiro. Como em uma fala minha, que as meninas reproduziram no documento, é necessário estarmos de lupa dentro dessa cidade, dentro desse município, olhando toda e qualquer estrutura racista.
Eu sempre falei muito do Estado, do país, mas que agora eu tenho que me debruçar e estar olhando com lupa de verdade sobre a cidade. A gente já fez algumas escutas. Começamos pela Saúde, muito voltada para a saúde da população negra. Aí, enveredamos pela Educação para falar da Lei nº 10.639, que é uma lei que, tristemente, a gente viu aqui que algumas escolas aplicam a partir do bem querer da diretora, porque ela tem o entendimento, então, ela vai e faz. Escutamos a Cultura com Patrimônio, quando a gente ouviu funk, charme, samba, os blocos, toda essa cultura popular, da população negra. E ficamos, eu mesma, eu digo que essas escutas, mais do que para qualquer outra pessoa, para mim, está sendo um entendimento, um saber, uma faculdade com mestrado e doutorado, brilhante de ver tudo que eu tenho visto e ouvido dessas pessoas dentro desse lugar aqui.
Aí, eu fiz uma com os CRESS? Falando das medidas em meio aberto. Coloquei aqui dentro uma quantidade muito boa de meninos e meninas, em medida socioeducativa. E agora, que isso tem a ver diretamente com o meu início na militância, porque o meu filho se tornou um adolescente autor de ato infracional aos 15 anos, foi assassinado aos 20. E também já tive alguns eventos, algumas audiências públicas com mães que tiveram seus filhos assassinados pelo braço armado do Estado. E agora, nada mais do que a gente estar falando sobre o desaparecimento forçado, porque isso também não está só no meu DNA enquanto militante, enquanto defensora dos direitos humanos, mas está totalmente no viés da discussão do racismo, porque a gente sabe que quem mais desaparece nesse país, nessa cidade é preto.
A gente agora vai dar início a todas essas falas para mais uma vez, a gente, – e quem está nos ouvindo, quem está nos vendo do outro lado – está sabendo de verdade como é que é o racismo dentro da cidade do Rio de Janeiro. Porque eu digo que logo no início das minhas falas no Plenário, o Plenário aqui começou dia 15 de fevereiro. E aí, nas minhas falas, o nosso Prefeito Eduardo Paes, jogou uma bola que toda hora eu boto no gol bonito, que é quando ele fala que essa cidade que ele está construindo é uma cidade antirracista. E aí, eu estou providenciando, concluindo um relatório para dizer a ele o que é uma cidade antirracista, ou que cidade antirracista a população negra quer. Porque até agora, com todas essas escutas que eu passei brevemente para vocês, o que não tem aqui é uma cidade antirracista. Essa cidade, com certeza, é uma cidade muito perigosa para o povo preto viver. É sobre isso, muito obrigada.
Nós temos aí um café, uma água, um biscoitinho, porque a gente diz sempre que isso aqui não é uma casa de preto, no sentido só da sua construção estrutural, mas quem está à frente é uma mulher negra. E casa de preto tem comida, tem bebida, a gente sabe disso. Então, é assim que a gente começa cada escuta, porque enquanto eu estiver aqui, isso vai ser uma casa de preto, com certeza.
A gente começa ouvindo a minha querida e ilustre Victória Grabois. A palavra está com você, meu amor.

A SRA. VICTÓRIA GRABOIS – Bom dia, a todos. Bom dia especial a Mônica Cunha, uma grande parceira do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, que muito nos honra. O grupo tem todos os anos, o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro homenageia pessoas ou entidades que lutam pelos direitos humanos, e nessa mesa temos três, além da Mônica, que foi homenageada na época pela sua luta na entidade Moleque. Dona Izildete, pela sua luta na rede contra a violência e o Amarildo. Então, aqui nessa Mesa, temos três homenageados pelo grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.

O grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro surgiu no início da redemocratização, não sei se a gente vive numa democracia, com o objetivo principal de esclarecer a morte de todos os desaparecidos da época da ditadura militar. Eu queria dizer que a gente conta mortos e desaparecidos da ditadura e esses mortos não quer dizer que as suas famílias os enterraram, a única coisa que eles fizeram foi dar um atestado de óbito que nada mais era do que uma certidão presumida de morte.
E nós vínhamos lutando e agora em setembro completamos 38 anos de existência. Por que da importância do grupo Tortura Nunca mais? A importância é que ele iniciou para pesquisar os casos da ditadura e contra a impunidade porque a impunidade neste país sempre existiu desde que Cabral chegou aqui e falou “Eu descobri o Brasil”. Começaram com os povos originários indígenas e com isso eles não se deixaram ser escravizados pelos europeus, pelos portugueses e aí eles trouxeram da África o povo africano para ser escravo aqui.
O grupo Tortura Nunca Mais resiste até hoje porque ele não ficou parado no tempo, ele também resiste pelo esclarecimento dos desaparecimentos e as mortes desses milhares de jovens. Como bem disse a Monica, na época da ditadura militar eles matavam, desapareciam, torturavam os opositores do regime, hoje eles matam, eles desaparecem, eles torturam pessoas pobres e faveladas da Cidade do Rio de Janeiro e da periferia das grandes cidades.
Queria dizer para vocês que o Brasil é signatário da Convenção de Direitos Humanos da Costa Rica de 1992, o Brasil assina a convenção, mas depois precisa ratificar essa Convenção; o Brasil também ratificou a Convenção dos Desaparecimentos forçados em 1994. Essa convenção pelo Brasil precisa ser ratificada. O que aconteceu? Ela está na Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal há mais de 17 anos e ninguém ratífica essa convenção, a gente tem que lutar por isso, pela Convenção dos Desaparecimentos Forçados.
Eu queria dizer para vocês que eu sou familiar de três desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia – meu pai, meu irmão e meu marido. Sábado agora vai fazer 50 anos que meu irmão é desaparecido político, no dia do Natal vai fazer 50 anos que meu pai e meu marido são desaparecidos políticos. Até hoje eles não deram a mínima atenção à questão dos desaparecimentos.
No ano de 1995 foi criada a lei nº 9.140, que tem várias coisas, vários itens, mas tem o principal que criou uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos no âmbito da, na época, Secretaria de Direitos Humanos, hoje Ministério de Direitos Humanos. Essa comissão sempre funcionou muito mal, mas funcionava, quer dizer, a gente tinha uma comissão para lá e quando também o grupo Tortura Nunca Mais é peticionário de uma ação da Guerrilha do Araguaia em 1995, o peticionário principal é o CEJIL – Centro pela Justiça e o Direito Internacional – e são copeticionados dessa ação o grupo Tortura Nunca Mais e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo.
Aí uma das demandas da lei era que a Comissão funcionasse e a Comissão fosse começar a investigar in loco onde estavam os desaparecidos políticos e essa Comissão funcionou.
Agora, uma coisa inédita, funcionou mal e porcamente porque não havia planejamento, não havia nada e o que aconteceu? O desgoverno passado, entre o Natal e o Ano Novo, extinguiu essa Comissão e essa Comissão não pode ser extinta porque ela foi criada por força de uma lei, a Lei nº 9.140/95. Nós estamos nesse momento lutando para que o Presidente Luiz Inácio da Silva... Pois já existe um decreto elaborado pelo Ministério dos Direitos Humanos, para que ele assine novamente a recriação da lei. Até agora, ele não assinou nada, e eu acho que não vai assinar, porque o Governo deve ter feito acordo com os militares, não é?
Esses militares que prenderam os nossos parentes, que torturaram os nossos parentes, que mataram os nossos parentes, milhares de brasileiros que lutaram pela liberdade e por justiça social nesse país. É uma coisa inédita no mundo que os militares, esses que prenderam, torturaram, dirijam, sejam coordenadores e participem dessas comissões. Nós também lutamos para que os militares não façam parte dessas comissões.
Então, eu estou aqui prestando toda minha solidariedade a essa comissão presidida pela Monica. Sempre aprendi que “brasileiro é bonzinho”; brasileiro não é bonzinho coisa nenhuma, brasileiro é violento e mata, e continua matando as pessoas vulneráveis: os pretos, os pobres das periferias das cidades brasileiras, e aqui, no caso, no Rio de Janeiro, uma coisa impressionante.
Muito obrigada. E que você tenha êxito nessa comissão. Muito obrigada.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Muito obrigada, minha querida Victória. Muito obrigada mesmo por essas palavras norteadoras, e por abrirmos tão bem essa escuta ouvindo você. É bom quando você fala “brasileiro não tem nada de bonzinho”. Não tem mesmo. Você vem desse lugar da ditadura. Eu estou, não por idade, e, sim, pela tragédia, no que se diz hoje, nessa ditadura atual, atualizada. Porque democracia ainda não chegou, nós sabemos bem disso.
Isso está bonito, semana passada, a Constituição de 1988 completou 35 anos, mas a gente ainda não entrou nela, pelo menos a população negra está ruim de chegar nessa Constituição. Mas temos que brigar, porque somos seres humanos, pagamos impostos e temos que exigir isso. Você fala de fazer esse mutirão para que o Lula assine essa lei, e eu já me coloco na primeira trincheira da luta.

A SRA. VICTÓRIA GRABOIS – Tem uma carta correndo de várias entidades e de parlamentares, eu vou enviar para sua assessoria para que você assine, sim?

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Por favor. A gente está junto nessa, por favor.
É isso, minha querida. Muito obrigada mais uma vez.
E dando continuidade, esse meu menino que foi incansável nessa luta... tão novo, mas tão perspicaz. Pegou seu estudo e se debruçou para entender que Brasil é esse. É com você, Lucas Pedretti, por favor.

O SR. LUCAS PEDRETTI – Bom dia a todas e todos. Monica, é uma honra, uma felicidade enorme estar aqui, não só ao lado dessas companheiras e companheiros da Mesa, mas, principalmente, ao seu lado. A gente sempre falou como seria importante que você estivesse nessa Casa, e esse evento de hoje comprova por que trazer um debate como esse para a Câmara dos Vereadores é algo que não acontecia até que você tenha chegado aqui. Então, por isso, saúdo a iniciativa da Comissão e o seu mandato.
Sou pesquisador, mas atualmente estou na coordenação de uma organização chamada Coalizão Memória, Verdade e Justiça, que tenta fazer uma articulação nacional de entidades que atuam nessa pauta. E muito recentemente, a gente teve, há cerca de três semanas, uma reunião no âmbito do GT de Desaparecimentos Forçados ou Involuntárias da ONU, com a relatora do grupo de trabalho, e na ocasião, a gente apresentou um documento que eu estou usando como base aqui dessa intervenção.
Por isso, eu faço questão de citar também alguns companheiros e companheiras que participaram da elaboração dessa reflexão coletiva: a Desirée Azevedo e a Carla Osmo, que são do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo; a Giselle Fiorentino e o Fransérgio Goulart, que são da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial; e o Rafael, que é do Instituto Vladimir Herzog – entidades que têm atuado nessa pauta.
Como nós ouviremos da Aline, a gente sabe que em julho de 1990, ocorreu a Chacina de Acari, e poucos meses depois, o jornalista Caco Barcellos localizou uma vala comum clandestina no cemitério de Perus, Zona Leste de São Paulo.
A gente está falando, em ambos os casos, muito provavelmente, ou, com muita certeza, de jovens assassinados sob tortura por agentes do Estado, que tiveram seus corpos ocultados. Ainda assim, o problema da vala de Perus e a chacina de Acari não tiveram o mesmo tratamento do conjunto da sociedade e das instâncias estatais; apesar de todas as limitações de que a Victória já falou, o caso da vala de Perus, de alguma maneira, abriu caminho para que se criasse um repúdio simbólico e um conjunto de instituições estatais, como, por exemplo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, voltadas para esse tema chamado “desaparecimento político”.
Em compensação, a chacina de Acari, e todas as chacinas que se seguiram naquele início da década de 90 e que seguem até hoje, não gerou nenhum tipo de repúdio simbólico do conjunto da sociedade, não produziram comissões da verdade, não produziram programas de reparação – muito pelo contrário! Como você falou, Vereadora Monica, a democracia, a Nova República entregou, na verdade, cada vez mais, ódio e pedidos de soluções violentas, quando se trata de jovens negros, moradores de favelas e periferias.
A gente sabe que a violência, como Victória também falou, é uma constante na história do País. Um exemplo importante disso é que os desaparecimentos forçados, como a iniciativa de direito à memória e justiça racial sempre ressalta, na verdade, fazem parte da história, da diáspora africana, da diáspora negra; o dispositivo de ocultação de corpos vem daí.
Nos anos 50, a gente tem o surgimento dos primeiros esquadrões da morte no Rio de Janeiro. E na ditadura militar, a transformação do desaparecimento forçado como uma política sistemática de Estado para lidar com as oposições organizadas.
Recentemente, num caso quase inédito, um policial civil foi condenado pela prática de ocultação de cadáver, na ditadura, o Cláudio Guerra, que é um caso conhecido. E no seu depoimento, o Ministério Público Federal, ele tem uma passagem bastante emblemática. O Cláudio Guerra foi condenado por queimar, por incinerar os corpos numa usina de cana no Norte Fluminense, em Campos, a Usina Cambahyba. E, no seu depoimento ao Ministério Público Federal, o Cláudio Guerra fala que a ideia que ele teve de incinerar os corpos dos militantes políticos na Usina se deu porque ele já a usava para incinerar os corpos dos chamados “bandidos comuns”, que ele costumava assassinar na qualidade de chefe de um esquadrão da morte da região.
Portanto, a gente vê, na verdade, que essa violência que se tornou sistemática durante a ditadura militar, na verdade, é fruto de um acúmulo de técnicas e dispositivo de terrorismo de estado que o Brasil, desde antes da ditadura, aplica contra os seus cidadãos, durante a ditadura se tornou sistemático.
Nos primeiros anos da vigência da Constituição de 1988, como eu falei, a localização da vala de Perus recolocou o problema do desaparecimento forçado na “ordem do dia”. E a partir daí, se desenvolveram não só iniciativas como a Lei nº 9.140, que a Vitória mencionou, mas as Leis: nos 10.559/2022, que criou a Comissão de Anistia; e a Lei nº 12.528/2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade.
Todas essas políticas tentaram, de alguma maneira, dar respostas do Estado, todas elas, extremamente limitadas ao problema do desaparecimento político. Apesar de essas instituições terem tentado dar respostas – e essas respostas serem muito limitadas –, a gente tem notado – e aí, o trabalho da Desirée Azevedo aponta para isso com muita clareza – que na história de como a categoria, o conceito de desaparecimento político se construiu no Brasil, ele acabou por demarcar duas fronteiras que o tornam muito mais limitado do que o conceito de desaparecimento forçado, tal como previsto nos parâmetros internacionais. Então, a ideia de desaparecimento político parte de uma restrição temporal, porque ela diz respeito ao período específico da ditadura. E ela parte de uma restrição que a gente pode chamar, talvez, de identitária, no sentido de que nessa categoria só são inscritas pessoas que são reconhecidas como militantes políticos.
Quando, mais recentemente, pelo trabalho de pesquisadores, comissões da verdade, principalmente dos próprios movimentos sociais, a gente tem notado, cada vez com mais dados, provas, documentos e testemunhos que o problema do desaparecimento forçado na ditadura atingiu uma gama muito mais ampla de setores sociais.
Então, a gente está falando de povos indígenas; a gente está falando dos moradores de favelas e periferias nas cidades; a gente está falando dos trabalhadores do campo, que não foram historicamente reconhecidos como desaparecidos políticos por essas instâncias estatais, ou seja, a gente tem um processo muito limitado, muito débil de reconhecimento do problema, do desaparecimento da ditadura, e que ainda é atravessado por essas dimensões de raça, classe, gênero, território. Porque é um conjunto muito amplo de grupos e indivíduos que foram também alvos do terrorismo de estado, naquele momento, e não têm sido contemplados pelo conceito.
Para encerrar, eu sei que a gente já passou do tempo, mas eu queria só falar rapidamente que a gente tem outro problema, que também tem a ver com esse entendimento restrito do problema do desaparecimento político, do desaparecimento forçado, que hoje se expressa no que a gente pode dizer a categoria de desaparecimento de pessoas que dá origem à lei atualmente em vigor de 2019 e a que dá origem também a programas importantes, como, por exemplo, o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público (PLID), acaba por fazer com que o termo do desaparecimento forçado fique subsumido dentro de uma categoria mais ampla. E a gente não tem dados sendo produzidos por instâncias estatais que consigam designar claramente o que dentro desse desaparecimento de pessoas significa desaparecimentos forçados.
A gente tem precisado que a sociedade civil trabalhe esses dados, no que a gente tem chamado de produção cidadã de dados. Então, como, por exemplo, a própria iniciativa direito a memória e justiça racial, mas também outras iniciativas aqui do município. Mas ainda é muito pouco perto do que o Estado deveria fazer para que a gente comece a ter noção do problema, a gente comece a conseguir diagnosticar o problema. Porque, como essa diferença mostra, como a chacina de Acari e a Vala de Perus, a diferença do reconhecimento público desses dois eventos, até hoje o desaparecimento forçado de vítimas da violência do Estado continua sem nenhum tipo de reconhecimento público, nenhum tipo de reconhecimento estatal, e a principal expressão disso é, talvez, também a ausência da tipificação do crime de desaparecimento forçado, que está parado no Congresso Nacional também. Ficou 10 anos parado na CCJ, foi recentemente aprovado na CCJ e hoje está pronto para votar.
Então, outra iniciativa importante que a gente poderia ter é de gestões junto aos nossos companheiros da Câmara dos Deputados para que esse PL voltasse a caminhar. Porque a aprovação do crime, a tipificação do crime de desaparecimento forçado seria um avanço importante para ajudar não só na responsabilização, mas também para que a gente possa começar a entender o tamanho do problema.
Eu fico por aqui, agradecendo, mais uma vez, a Monica pela possibilidade de falar nesta escuta pública e parabenizando a iniciativa.
Muito obrigado.

A SRA. VICTÓRIA GRABOIS – Posso falar só uma coisinha que é importante?
Eu queria dizer que o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro considera que os desaparecimentos de hoje, que os jovens que são assassinados hoje, desaparecidos são desaparecidos políticos igual à ditadura militar. Porque é um novo tipo. Antes era contra os ditadores, e o regime e agora é uma matança generalizada, em que querem acabar com essa parte da população brasileira. Então, nós consideramos todos que morrem, atualmente, que estão mortos pelos agentes do Estado, como desaparecidos políticos, como foram os nossos familiares à época da ditadura civil-militar no Brasil. Desculpe.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Com certeza, aqui não precisa nem pedir desculpa. Aqui a Casa é nossa de verdade, Victória.
Muito obrigada, Lucas, você foi excelente. Mas você, quando inicia com essas palavrinhas, que é o início da militância nossa no movimento de familiares de vítimas, que é memória, verdade, justiça e reparação, porque é o que nós, enquanto familiar, exigimos. Todo dia e toda hora para este estado, para este país, porque eles nos devem, nos devem muito, não é?
Quando nós botamos as nossas camisas não é para a gente ter like, para a gente sair na mídia, é para a gente dizer que aquela pessoa que está ali ou aquelas pessoas, como a Victória fala da quantidade que foi o irmão, que foi o companheiro, enfim, a gente bota essas pessoas na camisa para dizer que elas existiram, entendeu? E elas existiram e para nós essa perda é absurda, é consequência dos nossos corpos, das nossas doenças mentais a partir disso; é muito grave. E para quem é desaparecido é pior ainda, porque ainda tem o racismo, e ele é tão, tão absurdo do absurdo, Lucas, que é isso. Para quem é assassinado, a gente fica arrasada, mas ainda sabe que morreu porque enterrou. Tem a certidão de óbito, tem o número de onde está aquele corpo, mas e o desaparecido? Porque você fica a todo o momento esperando aquela porta abrir, porque ele pode chegar, o telefone... é uma loucura! É de uma maldade! Não tem tamanho o racismo neste país.
Tudo o que você falou sobre o esquadrão da morte, isso foi ontem, porque hoje a gente tem tráfico, com diversas facções, e tem a milícia, que faz esse papel que o esquadrão da morte fazia há tempos. Quer dizer, eles só se globalizam no sentido da atualidade, mas não deixam de existir de maneira alguma, prejudicando os nossos corpos.
A gente, da comissão, quando você fala dos povos indígenas, do campo e da favela, tem priorizado a fazer escutas com esses povos também para escutar tudo e todos.
Terminando aqui a minha fala, Luquinha – chamo por Luquinha por conta do afeto –, eu queria que você falasse pelo menos uns dois minutinhos sobre essa pesquisa que você fez, que é muito voltada para as pessoas negras nessa questão dos desaparecidos, por favor, até para contribuir com o nosso relatório.

O SR. LUCAS PEDRETTI – Pois é, Vereadora Monica. Eu acho que a gente tanto do ponto de vista dessas instituições estatais – que a Victória mencionou – como a Comissão de Mortos e Desaparecidos e a Comissão Nacional da Verdade, bem do que a gente pode chamar da historiografia ou da sociologia sobre a ditadura no Brasil, nunca deram atenção para o problema de como aquele regime autoritário também impactou essas populações durante os anos 60, 70 e 80.
Então, a gente tem hoje certeza de que o crescimento dos esquadrões da morte, por exemplo, dos grupos de extermínio, como você falou, hoje se atualizam na forma das milícias, ganharam a possibilidade de existir naquele momento, da ditadura militar, exatamente porque a gente tinha a construção de uma institucionalidade da arquitetura da segurança pública voltada para a militarização das forças policiais.
O surgimento, por exemplo, de grupos que vão dar origem ao BOPE, à CORE datam daquele período, formas administrativas e jurídicas de garantia da impunidade. O auto de resistência, a ideia de que militares que cometem crimes contra civis devam ser julgados em foro militar, tudo isso também surge naquele momento, e a própria disseminação de um discurso de autorização e legitimação da violência, que está na base da prática do terrorismo de Estado.
A gente sabe que, quando essa autorização vem de cima, vem das hierarquias superiores, isso desce afiançado que na ponta o agente policial, atuando efetivamente como agente policial, ou nesse lugar da margem do Estado, de forma paralegal no grupo de extermínio, no esquadrão da morte, ele se sinta autorizado a praticar cada vez formas mais violentas na relação com o cidadão.
Eu acho que a ditadura militar, apesar de ter dado – como falei como o caso do Cláudio Guerra – as tecnologias de terrorismo de Estado, que vem desde a diáspora africana, certamente ela atualizou determinados dispositivos e entregou para a democracia polícias e um sistema de Justiça muito mais capacitados a perpetrar graves violações de direitos humanos do que eles eram, com mais tecnologia, com mais discurso, com mais autonomia, com mais recursos jurídicos e institucionais para fazer isso a partir, fundamentalmente, desse recorte de raça e de classe.
Porque esse recorte que vinha da ditadura continua existindo durante o regime e segue existindo hoje, confirmando o perfil proprietário das vítimas da violência do Estado no Brasil.
Ter atenção para como esse período da ditadura atualizou esses dispositivos, eu acho que é importante para que a gente não só entenda de forma mais complexa o que foi aquele período, e isso nos permite, inclusive, repudiar a ideia de que a ditadura no Brasil teria sido uma dita branda, teria sido menos violenta, que é uma ideia completamente absurda, mas que a gente ouve até hoje, mas que a gente possa entender também os efeitos desse regime para a democracia, enfim para esse regime pós 88, que nós temos sob a vigência desta Constituição que prometeu ódio e nojo à ditadura, mas que permitiu as chacinas se multiplicarem como a gente sabe.
Então, acho que é isso, e é muito importante que essa Comissão tenha também essa perspectiva histórica nesse relatório, porque acho que é um debate que aparece muito pouco. Então, mais uma vez, quero falar da importância dessa Comissão e do seu trabalho.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Obrigada, meu querido, muito obrigada. Essa Comissão está para falar tudo que sempre se falou muito pouco, a gente vai falar muito, muito, muito, muito.
Dando continuidade agora, essa menina para mim também é uma menina que eu amo muito. Ela mesma pode falar das sequelas reais do que foi esse desaparecimento na vida dela e de toda a desestrutura na vida dela e na vida da família e na vida daquela favela chamada Acari.
Vamos ouvir Aline Leite. É com você, meu amor.

A SRA. ALINE LEITE – Olá, bom dia a todos e todas. Gostaria de agradecer, primeiramente, e parabenizar por essa escuta, por essa Comissão, porque Monica sabe que estamos juntas sempre. E
falar do caso Acari, um caso, sim, de desaparecimento forçado e, como o Lucas falou agora, precisa ser reconhecido como um caso de desaparecimento forçado, o que não é, onde não tivemos corpos.
E esse luto, a gente não teve, a gente viveu luta, a gente vive luta há 33 anos; a gente não vive o luto, porque eu considero luto quando a gente consegue enterrar, quando a gente consegue ter uma certidão de óbito, que não é o nosso caso.
Nós temos 11 jovens no caso Acari desaparecidos e quatro certidões de óbito. Agora, eu pergunto a vocês o que difere, se todos eles desapareceram no mesmo local. O que difere uma família da outra? Será que minha irmã está por aí, vai entrar por essa porta, como disse a Monica Cunha? Será que o filho de outra mãe, outra irmã, outro ente querido vai entrar a qualquer momento? Não, não vai, a gente sabe que não vai.
Então, é dizer que essa reparação... e uma lei nesta Casa, Monica, no ano passado, em 2022, que é a Lei nº 6.043, foi sancionada pelo então Presidente André Ceciliano, dizendo que essas famílias deveriam ser reparadas, que deveria sim ter tido um memorial, que a gente luta por memória, verdade e justiça, sim, e reparação. E esta Casa ainda não nos deu isso; nós fizemos tudo que foi pedido, e esta Casa ainda não nos deu.
Então, quero deixar claro isso também, já que estamos aqui, e dizer que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos está processando o Brasil, esse estado, pelo caso Acari. Nós vamos a Bogotá, na Colômbia, estou viajando hoje, e vamos ter o julgamento dia 12 de outubro. Esse julgamento vai ser um divisor de águas no caso Acari.
Imagina para essas famílias. Somos nove famílias viajando. Eu vou depor junto com a Rosângela, que é filha da Edméia, do caso Acari, que teve sua mãe assassinada e, ainda por cima, o seu irmão desaparecido. Então, vamos as duas depor contra este país, este país racista, este país que mata; quando não mata, deixa a gente do jeito que eu estou aqui agora, tremendo para falar, e não é de nervoso de falar com vocês, é tremendo de falar desse caso mais uma vez.
Eu tenho 41 anos, só pareço novinha – não é, Mônica? –, mas eu tenho 41 anos, e eu tenho 33 de caso Acari. Então, eu não sei falar de outra coisa na minha vida sem ser o caso Acari. Eu não tenho o que falar, a não ser de dor. A gente sorri sim nos nossos encontros, a Monica sabe, a gente sorri, sim, nos nossos encontros, a Monica sabe, a gente sorri porque a gente é mulher, a gente é preta, a gente é pobre, a gente é favelada, a gente está acostumada com essa luta – com o que não deveria estar acostumado –, com essa luta diária. Mas eu tenho 33 anos de Casa Acari, são Ele tem 33 anos de Casa Acari e eu tenho 41 de vida... por conta de toda essa tragédia, toda essa luta vivida nesses 33 anos. Quero dizer que nós somos mães ingovernáveis. Eu não sou mãe, eu sou irmã, mas eu não sou mãe ainda, mas somos mães ingovernáveis – e desistir não é uma opção.
Nós vamos para Bogotá, Colômbia, não para passear, nós vamos para poder reivindicar os nossos direitos e mostrar que a Casa Acari merece, sim, um reconhecimento – merece, sim. Quem sabe, vindo de fora para dentro, a gente consiga esse reconhecimento.
Obrigada, obrigada a todos.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso, minha menina. Eu estava aqui, porque a cabeça que já não nasceu boa, e o Estado fez a gentileza de deixá-la bem ruim, e cada dia que passa vem ficando mais um bocado. Então, eu fiz aqui, você tinha oito anos de idade quando isso aconteceu, a gente tem que deixar registrado, sim, porque uma coisa é a gente falar ou pegar um jornal e ler, outra coisa é a gente ouvir, ouvir de uma pessoa hoje, uma mulher com 41 anos dizer para nós que ela tinha 8 anos quando desapareceu sua irmã.
E isso levou porque eu acompanhei, eu não estou na militância desde o início de Acari, mas eu estou da metade para cá, porque é isso, eu tenho mais de 20 anos também de militância. Só o assassinato do meu filho, dezembro, agora, completa 17 anos. Nós ouvirmos e estarmos aqui, mesmo que seja olhando aqui na telinha, essa mulher de 41 anos dizer que tinha 8 anos e que o Estado a sequelou para o resto da vida.

A SRA. ALINE LEITE – Exatamente.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) –Aline é uma trabalhadora de um órgão público, da Comlurb, mas que vive mais de licença do que outra coisa, por conta de todos os problemas emocionais que ela tem. Isso afetou a vida de relacionamento, a vida dela como pessoa humana neste Estado. Olha o absurdo! E o Estado não quer, o país não quer se responsabilizar. Tem, sim – tem! –, eles nos devem desculpas, isso eu acho muito importante, mas nos devem, sim, reparação, e reparação com dinheiro, sim.
Fale o que quiserem falar! Porque tem algumas pessoas, Lucas e Victória, que dizem: “os filhos têm que morrer para vocês requererem dinheiro”, pelo amor de Deus! Não tem preço que vale qualquer um dos nossos filhos, qualquer uma dessas pessoas que a gente está falando aqui. Só que é isso, desestrutura.
Esse país é movido pelo capitalismo. Como é que você mora? Como é que você come? Como é que você vive? Como é que você compra remédio? Porque não me venha com essa coisa de empurrar para pegar os remédios no SUS, porque eu estou lutando e continuo lutando. Continua, SUS! Viva SUS! Mas a gente sabe que o SUS que nós usamos é sucateado, o que é para nós. Ele não é sucateado para todos os seres humanos do Estado, não. Para a população preta, favelada e pobre, é.
Como é que faz? Não tem o remédio, você não compra? Fica sem, para morrer? Porque depressão mata, síndrome do pânico mata. Eu tenho tudo isso e mais um bocado.
Então, é sobre isso. Tinha oito anos, uma criança. O que são oito anos? Eu que já sou avó, a minha mais velha tem 23 e a minha pequena tem quatro anos.
Então, eu sei muito bem o que é uma criança com oito anos de idade. E hoje essa mulher, que também tem idade para ser minha filha, porque tenho um filho mais velho que tem a sua idade, 41 anos, é um absurdo o que o Estado faz com a vida de mulheres e da população negra. Está aí a Aline, é o retrato disso, e essas outras pessoas de quem ela está falando, que eu conheci, eu sabia da existência, mas eu não as conhecia. Eu as conheci nesse último ato que foi feito agora, em junho, julho, sobre os 33 anos de Acari. E aí, eu vi a filha da Ediméia, a filha de outros. Porque é isso, a Aline tem até uma frase que eu não me recordo agora, que vocês falam: “Os filhos para não deixar com que essa geração viva o que a geração passada viveu”. Vocês têm essa frase que eu acho muito importante.

A SRA. ALINE LEITE – Não me recordo agora. É uma fala, não estou me recordando agora, mas é uma fala que diz a gente precisa, que somos filhas de uma nova, somos filhas da próxima geração de Acari, filhas de Acari.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso, é para não deixar que esta geração e as próximas não vivam o que a primeira geração viveu. Isso é de uma importância muito grande. Então, isso é memória, isso, de fato, é reparação em busca da justiça.
Portanto, minha querida, muito obrigada pela sua contribuição. Estamos juntas, já falei para você desde sempre, e eu continuo. Só estou dizendo que eu mudei de função, mas a essência continua a mesma. Esse povo aqui de dentro é que não sabia, mas vocês já sabem. O espanto é só para eles, para vocês é a mesma coisa. Beijo grande, minha querida. Muito obrigada.
Agora, vamos ouvir essa criatura que ao longo da minha vida, um dia me ama, um dia me xinga, mas a gente está vivendo esses anos aí nessa trincheira da doida luta – não é, Dona Izildete? Agora é com você, meu amor.

A SRA. IZILDETE SANTOS DA SILVA – Eu vivo há 20 anos lutando, quando aconteceu isso com meu filho. E fui encaminhada para a Moleque para poder... Depois, a Monica, quando aconteceu com o filho dela, eu estava junto, sempre andando com ela. E ai de mim se não fosse a Tortura Nunca Mais, que me deu muitax’ força. Ela que encaminhava para os Direitos Humanos, ela que encaminhava para o Palácio Guanabara.
Eu sei que em todo órgão que eu fui, agradeço a ela. Só que agora, eu estou vivendo sem apoio de ninguém. Já são 20 anos que aconteceu isso com meu filho. Tenho um filho especial que não está tendo apoio de ninguém do Estado. Ele sempre teve apoio. O menino estudava, o menino fazia todas as atividades, porque ele parou de andar com o sumiço do irmão dele.
O meu outro filho caiu do trem, também começou a beber, caiu do trem. Quer dizer, dois filhos pelo Estado. Agora, estou com meu filho especial lá, numa cama, vegetando. Como eu estou na justiça desde 2014 e ninguém faz nada, vou à Defensoria, dizem que o juiz já mandou, o Prefeito não faz nada. Minha casa era em Acari, me jogaram de Acari para Senador Camará. Eu fiz a inscrição da casa quando aconteceu isso, minha casa era aqui no Rio.
Eu, com as Mães de Acari, a gente correu atrás da casa e tudo. Quando saiu o Governador, disseram que eu tinha ganhado a casa. Aí foi que o Marcelo Freixo correu junto comigo, ficou aquele jogo de empurra, o Estado e o Município.
Quando foi o município, disse que era aqui em Triagem, e na hora me jogaram lá para Senador Camará. Meu filho perdeu toda atividade, perdeu o colégio, perdeu tudo. Meu filho está com 46 anos, vegetando numa cama, ninguém, o Estado, ninguém vai lá ver como é que está meu filho. E eu fico sofrendo com isso, agora que estou começando a correr atrás para ver, porque ninguém faz nada, ninguém faz nada. Eu tenho filho, corri atrás de tudo, ele ficou cego pela Federal. Ele ficava numa Instituição para eu trabalhar, quando meu filho ficava no Morro Santa Marta.
Eu tinha muito apoio naquele tempo. Depois que aconteceu isso com meu filho, todo mundo virou as costas e eu fico sentida com isso, porque o Estado está me devendo, como eu falei, o que o Município não faz, o Estado tem que fazer.
Então, um deles tem que fazer alguma coisa para salvar meu filho, meu filho está lá vegetando, o que está me matando. Eu já estou com 73 anos e desde 2003 eu luto, andava com as Mães de Acari. Morreu a Vera, minha única parceira. Ela foi embora e, então, eu não tenho ninguém. Ando com as pessoas da rede, mas ninguém vê o caso do meu filho especial e a única coisa que eu peço é para verem e ninguém vê.
É isso o que eu quero. E tem meu neto, que está com 15 anos, mora comigo e é ele quem me ajuda a pegar o garoto, que eu não consigo mais tirar meu filho da cama. Meu filho fica lá vegetando, meu neto que o tira da cama para dar banho. Eu dou banho na cama porque não consigo pegá-lo e ninguém faz nada. É só isso o que eu queria falar e estou lutando por justiça.
Enquanto eu estiver viva eu vou lutar, porque eu quero saber o que aconteceu com meu filho e eles sabem que foram os policiais que pegaram ele, mas ninguém faz nada. Em 2014, me chamaram para fazer o DNA, para que? Ninguém me deu resposta. Procura um, procura outro e ninguém fala nada.
A Victória, do Tortura Nunca Mais, foi quem me deu muito apoio; o Bahia também. Meu filho tinha colégio, tinha tudo e agora meu filho não tem nada.
Obrigada, Monica.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso. Quando ela fala “o moleque”, o moleque é o movimento que eu construí junto com outras mães, que existe há mais de 20 anos no Estado do Rio de Janeiro. Primeiro, nasce para a gente falar e denunciar os absurdos, as violações, dentro das unidades de medida socioeducativa e depois ele faz o recorte. Foi o primeiro movimento no Estado a fazer o recorte racial dentro dessas medidas, a reconhecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente existia, mas não era cumprido, porque a maioria que estava ali era de adolescentes negros, como é até hoje.
É o primeiro movimento no Estado a falar sobre o racismo nas medidas socioeducativas e de lá para cá é isso: a gente não fala só sobre o não cumprimento das medidas por conta do racismo, mas desses assassinados, voltados prioritariamente para esses adolescentes, com a desculpa absurda de ter envolvimento, ter passagem. Então, eles podem ser sumidos, eles podem ser assassinados porque para eles vale tudo, são corpos matáveis, então pode.
Enfim, é vergonhoso quando a gente escuta da Izildete que ela tem que ir esmolar para ficar viva, isso é um absurdo. O Estado é que deve, não é ela que deve nada a eles; o Estado foi que sumiu com um filho dela, o outro caiu do trem e até hoje nada. Quer dizer, então, ela tem que esmolar, pedir: “Olha, eu quero continuar viva, eu tenho um outro filho que está em cima da cama, que necessita disso, daquilo e daquilo outro” e aí um menino, no auge dos seus 15 anos, que poderia estar aí fazendo milhares de coisas, está aí diretamente; tendo que se tornar esse homem para poder estar junto da avó e junto do tio. Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus!
É sobre isso, a discussão é sobre isso. Pegando um pouco ali o que a Aline falou da lei, porque a lei, Aline, é na Alerj, na Assembleia Legislativa, não aqui na Câmara Municipal. Mas isso não quer dizer que essas casas não tenham responsabilidade nesses casos. Todas as três esferas têm responsabilidades, tanto a municipal quanto a estadual, quanto a federal. Porque se colocasse, a gente não estava ouvindo o que a gente está ouvindo da Izildete.
Isso é um absurdo, porque me revolta mesmo. Aí eles se acham no direito de darem uma casa, mas não é onde ela quer ficar, é onde eles acham que tem que ser. E aí pega a mulher que estava morando aqui no Centro, perto de tudo, que fica mais fácil até para se locomover por conta do filho ter problema, bota a mulher para morar lá no caixa prego, onde tudo é muito mais difícil. O que é isso, cara? Isso é um absurdo, sabe? A gente, a todo momento, tem que estar fazendo esforços absurdos para requerer os direitos da população negra neste país. Isso é o fim da picada, sabe? Exigir direito para continuar vivo. É sobre isso.
Muito obrigada, Izildete.

A SRA. ALINE LEITE – Monica.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Fala, querida.

A SRA. ALINE LEITE – Monica, eu queria falar, pedir desculpa primeiro, que é da Alerj, sim. Foi, então, com o Deputado André Ceciliano.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Deputado André Ceciliano. Isso.

A SRA. ALINE LEITE – Isso, deputado, na época. E quero dizer que são muitas violações, não só no caso de Acari, mas da Dona Izildete; são diversas as violações. Não basta ter desaparecidos, mortos, assassinados, a gente fica, em 33 anos, no caso da Dona Izildete, 20 anos, são diversas violações que eles fazem com a nossa vida, não é? Não é só, não basta ser só desaparecido, a gente vive emocionalmente destruído, psicologicamente, como você diz. Eu vivo mais de licença, eu me encontro de licença há quatro anos direto, e não tenho nenhum apoio emocional. Nessa lei, está garantido, estaria garantido um apoio psicológico para as vítimas. As vítimas, os entes queridos estão esperando até hoje. A gente, enquanto família, está esperando até hoje esse apoio psicológico.
Então, acho que é o mínimo um apoio psicológico para uma família, nove famílias que tiveram 11 jovens desaparecidos 33 anos atrás. É esperar um apoio psicológico, um profissional que diga, que consiga nortear nossa vida novamente, sabe? Acho que isso é o mínimo. Não estou nem falando, e a gente pode falar, sim, do dinheiro, como você falou, o dinheiro, porque tem que ser reparado financeiramente, sim. Sim, ela existiu. Minha mãe dizia: “Eu pari minha filha, eu pari, eu tenho a certidão de nascimento e não tenho a de óbito”. Ela falou que enquanto estivesse viva queria ter essa certidão de óbito. Foi embora e não teve. Então, eu não vou deixar para uma próxima geração. Eu quero ir à Colômbia, estou indo para a Colômbia, para Bogotá, para voltar de lá, sim, com essa certidão, com essa certeza de que eu terei uma certidão de óbito para minha irmã.
Obrigada, Monica.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Obrigada, minha querida. Muito obrigada. Com certeza absoluta.
E registrando aqui duas coisinhas. Primeiro, essa certidão de morte presumida foi uma luta das Mães de Acari, a gente não pode esquecer. Isso não foi um benefício que o Estado dormiu e acordou, falou: “Ah, é, aquelas famílias...”. Não, não, não, não, não, nessa luta eu estava, está me entendendo? Foi uma luta das Mães de Acari, porque isso, com a certidão, o Estado reconhece que aquele ser não existe mais. É igual à certidão de óbito. E aí ela pode requerer na Justiça o direito que é devido. Então, isso foi uma luta das Mães de Acari. Só para registrar.
E a outra coisa para fazer registro é o nome do filho da Dona Izildete, que ele se chamava, porque ele existiu, como a sua irmã, Aline, a Izildete também pariu esse filho, que o Estado tenta, de fato, não reconhecer. O nome dele era Fábio Eduardo Soares Santos de Souza. Presente!
Agora, a gente vai dar continuidade, chamando, porque eu a chamo de pequenininha, porque é isso, ela é muito pequenininha de verdade. As mãos, os pés, a estatura. Só que ela é muito grande nas atitudes, muita coisa! E hoje também eu tenho a honra, tenho algum tempo de caminhada com ela, de luta. Mas hoje eu tenho a honra de tê-la junto dessa luta, muito mais colada comigo, porque está dentro do meu gabinete, no qual eu faço muita questão que ela esteja.
Michelle Lacerda, do Movimento Cadê Amarildo. A palavra está com você.

A SRA. MICHELLE LACERDA – Vereadora! O coração até dispara!
Vou começar me apresentando. Eu me chamo Michelle Lacerda. Eu tenho 36 anos de idade – o tamanho não parece, eu sei. Eu sou moradora da favela da Rocinha, onde eu nasci, me criei e crio os meus filhos. Um espaço de vivência de muita importância para a gente. Porque ser favelado é estar no nosso DNA, enquanto lutadores. E o fato de ser favelada me faz ser um corpo político muito ativo. Mas, antes de qualquer coisa que eu viva, vem a cor da minha pele. Essa cor que para a gente é muito cara. E é cara porque a gente luta para sobreviver. E como diz a Fernanda, que é assessora da Mari, que estava no dia da execução dela, sobreviver é muito cruel. É muito cruel.
E aí eu quero começar a falar nessa escuta, e primeiro agradecer também pelo convite e pela importância de a gente poder manter viva a memória, e sempre lutando por memórias, justiça e reparação, e de poder ecoar a voz do meu tio e de todos os nossos mortos.
O meu tio, no dia 14 de julho de 2013, foi retirado de dentro da sua casa para uma averiguação. E aí, dessa averiguação, ele nunca mais apareceu. Desde então, a nossa maior busca é pela resposta de “Cadê o Amarildo?”.
Por isso a gente criou um movimento, um movimento que não teria a perna que teve, se a gente não tivesse os apoios que a gente teve. Se a gente não tivesse as pessoas que estavam do nosso lado, principalmente, com mais experiência, mas que estavam ali, Monica, para segurar na nossa mão, principalmente. Porque você sabe, Dona Izildete sabe, e as pessoas que perderam os seus sabem que essa estrutura deixa a gente tão abalada que a gente não consegue caminhar se a gente não tiver as companheiras que vão segurar a nossa mão e ajudar a gente a caminhar.
E aí, Victória, você traz junto com as mães de Acari, traz essa luta, mas traz para a gente o atestado de óbito por morte presumida. O Estado tira o meu tio de dentro de casa e devolve para a gente um atestado de óbito por morte presumida. A gente receber esse atestado é muito cruel. Mas infelizmente, também, tentar aquietar – porque é tentar, não aquieta –, mas é tentar aquietar o nosso coração de que aquela pessoa não vai voltar mais.
Quem tirou o meu tio de dentro de casa foi o Estado, com o braço armado dele. E uma das nossas maiores lutas foi a de acusar e fazer o Estado se culpabilizar pela destruição que aconteceu dentro da nossa casa, dentro da nossa família. Porque eles têm uma crueldade e uma arte de sumir com corpos que é indescritível e que se aprimorou. Porque a gente não vai dizer que aconteceu de ontem para hoje. E a nossa história e a nossa ancestralidade contam muito sobre isso.
Ele se aprimorou a partir da ditadura também, porque torturar eu tenho certeza de que os meus que vieram antes eram torturados diariamente nos troncos. E essa tortura se aprimora com a ditadura militar. Isso faz a gente vir e gritar e querer ecoar, principalmente, a verdade, porque a gente quer saber de verdade o que realmente aconteceu. Mas também a gente quer mostrar que aquela vítima que o Estado vive criminalizando não é aquela verdade que o Estado diz, que o policial porque tem fé pública diz.
O meu tio não era traficante porque o policial chegou e disse. Mas, mesmo que ele fosse, torturar, matar e desaparecer com corpo dele, não é uma prerrogativa legal que o Estado teria.
Eu quero aproveitar também e dizer que aconteceu o desaparecimento do meu tio, foi promovido pela UPP. Mas eu quero aproveitar. A UPP é polícia de unidade pacificadora, que era vendida como solução do Estado para os problemas que existem na favela. Como se o favelado não precisasse de cultura, lazer, educação de qualidade. Como se o favelado fosse atingido diariamente quando tem uma operação policial e ele não pode ir para escola.
Mas torturar e desaparecer são prerrogativas que o Estado acha que são legais. Não são. Não é, e dói todo dia. Passaram-se 10 anos do desaparecimento e da morte do meu tio, e a Victória traz sobre os 50 dela. Dona Izildete traz sobre o filho dela. Parece que foi ontem. É uma ferida que não fecha, é uma dor que não para de arder. Não adianta um beijinho da mãe naquela ferida, porque não passa, não passa. Dói como se fosse agora, como se não tivesse acontecendo. A família é torturada e matada e tem o seu corpo ocultado diariamente, quando você liga automaticamente o nome do desaparecido na sua vida, no seu cotidiano.
Eu quero aproveitar para dizer que, quando a gente está falando desaparecido, e eu, lá em 2013, ainda quando meu tio desaparece, a minha família tem um encontro com o prefeito, o Senhor Prefeito Eduardo Paes. Aminha família tem um encontro com ele, escondido. Ele fez questão de encontrar a gente escondido.
Se vocês procurarem não vai ter em mídia nenhuma. A gente foi no Rinaldo de Lamare, e eu estava presente, e o que ele falou foi: apesar de a Prefeitura não ser o estado e não ser responsável pela polícia, eu estou aqui para dar um abraço. Senhor Prefeito, a gente não precisa de abraço, a gente precisa da sua responsabilização também. Porque, se o senhor está aí onde está, foi porque eleitores te elegeram e você precisa defender os moradores daqui deste município que você representa.
A gente está adoecendo cada vez mais, e toda a família desaparecida, como traz a Dona Izildete, é destroçada, ela tem a sua saúde mental completamente bagunçada. E o senhor não cuida dos Caps, o senhor não cuida da saúde primária? Acho que isso é uma coisa da saúde primária. A gente precisa ser amparada, a gente precisa ser cuidada também. Sabe por quê? Porque a gente não está aqui só para ficar sofrendo e carregando corrente. A gente move esta cidade. É a gente que está na sua cozinha, cozinhando; é a gente que está levando seu filho para escola ou, simplesmente, dentro da escola do seu filho, educando-o.
Então, nossos filhos também merecem ser educados de tal maneira. Os nossos filhos também merecem ser educados de tal maneira. Os nossos filhos também precisam de tal atenção, a nossa família e a família de todo desaparecido precisa ser amparada. Mas, antes disso, a sua política tem que ser voltada para o não desaparecimento das pessoas, não desaparecimento dessa forma.
Dessa forma, a gente aprendeu... A gente tem a cultura de se despedir dos nossos entes queridos, de fazer o enterro deles, mas a gente não teve esse direito. Até hoje, a gente pergunta onde estão os restos mortais do meu tio? Do meu tio e de tantos outros desaparecidos? Porque o meu tio, infelizmente, não foi o primeiro e também, infelizmente, não será o último.
A gente precisa muito de ser olhado, mas ser olhado com carinho. Por isso, Vereadora Monica, é muito importante ter essa Comissão Especial de Combate ao Racismo. Quem some, quem desaparece, tem endereço, tem. Mas tem uma cor de pele também que grita muito alto. Não estou falando que outras pessoas, de outras cores, não desapareçam. Mas se fizer um recorte, você verá que quem realmente está sendo apagado, apagado de todas as maneiras, porque começam com a nossa história, passam pela nossa cultura, pela nossa religião e aí desaparecem com os nossos corpos, desaparecem com a nossa família e destroem todo o nosso viés, até acessar a educação.
Quando o meu tio desapareceu, a Milena tinha seis anos de idade. A Milena hoje está com 16 anos e está numa escola de ensino médio. Só esse ano, ela já mudou por duas vezes. Primeiro mudou, porque a primeira escola não tinha professores. Mudou, de novo, porque o lugar onde a gente vive não permite que a gente vá para a escola. Eu quero uma coisa muito diferente para a Milena, mas a primeira coisa que acontece é a gente ter a força policial impedindo a gente de sair.
Para finalizar a minha fala, eu quero, de novo, salientar que o dever de quem governa em cada âmbito e a responsabilidade deveriam perpassar não só pelo poder do governador, que já mostrou e faz a sua política de genocídio da população negra, mas principalmente pelo nosso Prefeito Eduardo Paes. Vou repetir porque a gente está numa Casa Legislativa do âmbito municipal: Senhor Prefeito, por favor, faça sua política de vida e não de morte.
Também queria mandar um recado para o nosso Presidente, porque ele está em Brasília, mas ele precisa cuidar de toda a população. Ele está lá porque foi colocado lá. E se a gente brigou para que ele seja a nossa salvação contra aquele genocida, então ele que seja a nossa salvação. A gente vai apertar a mão, se for necessário. Mas a gente vai estar na rua gritando e pedindo solução, porque a gente não aguenta mais, a gente não quer morrer, a gente não quer que os nossos filhos sejam mortos.
Por memória, justiça, reparação e verdade, eu digo: Amarildo...
Presente.
Hoje...
E sempre.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso. Essa é pequenininha. Eu digo para vocês que ela só não tem tamanho. Não tem. Mas de resto, tem tudo. É isso mesmo, Michele: quem chega à frente em qualquer lugar e de qualquer coisa é a nossa cor. Não é o diploma, não é a competência, não é nada; é a nossa cor. A nossa cor é que faz esse Estado, esse país achar o que somos, o que queremos, para aonde vamos. É impressionante como eles se acham no direito de ditar o que é melhor para a gente a partir da cor de pele que temos.
E isso, você deixou muito escuro na sua fala. Quando você fala também, esses nossos passos vêm de longe, a tortura vem desde os grilhões dos navios, dos porões, enfim de todos esses tristemente espaços torturadores que a nossa história vem até a data presente.
Tem uma coisa que eu teria que ter falado no início, mas, enfim, passou porque eu estava meio que nervosa para iniciar, não sabia se seria a nossa escuta, de fato, ou o que a gente está fazendo, que é um Debate Público. Então, eu acabei não falando, mas você trouxe na sua fala, o que me fez lembrar.
Quando você fala dessa política, dessa polícia de unidade pacificadora, que foram as UPPs, que eu lembro de muita gente de favela com as quais eu me relaciono, trabalho, sou parceira, amiga, com as quais eu bebo, eu saio, que achava que ia ser, de fato, uma boa, que ia melhorar aquela situação. Como eu digo, e eu digo sem nenhum medo, polícia nunca me gera nada bom e nem me cheira a nada bom, até porque quem matou meu filho foram policiais civis. Então, eu ando sempre com o pé – não é nem com um, não, com os dois pés atrás, no que diz respeito a quaisquer ações feitas por eles.
E aí, essas operações, Michelle, de ontem e de hoje, a gente não pode esquecer que a gente hoje acordou com a Cidade de Deus, mas principalmente com a Maré, toda rodeada por diversos policiais federais, que foram trazidos diversos, que o nosso Flávio Dino designou, a partir da reportagem do Fantástico. Enfim, eu não vi ontem, mas a passada, a reportagem passada.
E aí, a gente também sabe, todas as ocupações que diversas favelas no Rio de Janeiro já tiveram, por diversas polícias, seja ela a CORE, seja ela a PRF, seja ela pelo BOPE, todas, eu não vou ficar aqui, porque não foi diferente para nenhuma força policial dentro de nenhuma favela. O resultado sempre é o mesmo, sempre é o mesmo.
Em qualquer uma, é corpo preto no chão, é casa invadida, é preto desaparecido, é o direito de ir e vir daquelas pessoas ceifado. Enfim, o resultado, em suma, é tudo o mesmo, é tudo mais do mesmo. Mas eles insistem, qualquer gestão que chega lá em Brasília, em fazer a mesma coisa. Porque eu não sei, eu não sei onde está escrito, eu juro que eu não sei.
Eu queria ler esse manual que eles conseguem leem, Lucas, para dizer em que lugar isso deu certo, em que ano foi. Será que eu não tinha nascido? Porque eu já vou fazer 60 anos, Vitória, e ainda não vi, eu não sei onde é que está, porque eles insistem na mesma coisa.
É igual quando eles insistem em dizer que não só matar e executar preto, mas como encarcerar também, ainda é a melhor coisa. E temos aí a terceira maior população encarcerada do mundo, que é a do Brasil. Mas está dando certo. Onde que está escrito isso?
E a gente fica aqui, para eles, somos pessoas loucas, que ficam gritando e dizendo que não. Porque não só sabemos, somos pessoas que olhamos e fazemos direitos humanos com lupa, mas porque a gente sofreu na nossa pele. Todos os dias somos nós que sofremos. E eles insistem em achar que essas ações são as melhores do mundo. Eu estou planejando, está dando tudo certo, não sei em qual lugar está dando certo.
Quando você fala que esse desaparecimento continua, gente, enfim, tristemente, claro que a menina do Rio de Paz deve falar melhor, porque se empenharam muito, que foi o desaparecimento das três crianças de Belford Roxo até hoje.
Por coincidência, a Tatiana, mãe de um, me ligou essa semana para dizer que o filho faria 14 anos. Porque eu não sei se todos têm noção, a partir da perda, seja o desaparecimento, seja a morte, eu já botei a diferença, que é gritante, sobre essas duas situações, mas as datas são as mesmas para nós. Que data é? A Michele falou do dia 14 de julho, que foi o desaparecimento.
Então, ela não vai esquecer essa data, 14 de julho. Eu não vou esquecer a data do dia 5 de dezembro de 2006, que foi o dia que mataram meu filho. Eu não vou esquecer a data, como a mãe do Amarildo, que não deve estar mais viva, mas estão as irmãs; uma é mãe de Michelle, que vai lembrar o dia do nascimento dele, que é o dia do aniversário. Aquele dia vai ser terrível.
Vai vir o Natal, porque, em cima do cristianismo em que somos criados, tem o Natal, tem menino Jesus, tem lá a cestinha, que todo ser humano pertencente a esse planeta tem o imaginário de fazer a ceia. Mas as nossas mesas de preto nunca foram completas e nunca vão ser completas. Antigamente a gente ainda podia dizer “está faltando um”, agora faltam, muitas vezes, até 10.
Mas essas ações, na colocação dos gestores públicos, estão dando certo. Está aí, isso eu não sabia, dessa “boa ação” do nosso Prefeito, que está no seu terceiro mandato, tinha feito. Ele deve achar que foi uma excelente ação. “Eu convidei a família para dar um abraço, mas no escondidinho, não faz fotos, não, porque eu não quero que isso saia, porque vão dizer o quê?” Isso é para poder não assumir.
Tem responsabilidade, sim. Toda hora que eu estou lá no Plenário, eu falo. Quando chega aos meus ouvidos que morreu alguém dentro do escopo da Cidade do Rio de Janeiro, eu jogo para cima dele, porque é óbvio que ele tem responsabilidade.
Por ele achar isso que as coisas vão caminhando, porque entra um, sai outro e ninguém pega como prioridade nada. Vai só empurrando, botando debaixo do tapete. Mas é a cidade antirracista... “ah deve estar dentro da cidade antirracista, vou te dar um abraço”. Peguei agora o entendimento da cidade antirracista do seu Eduardo Paes.
É isso, Michelle. Muito obrigada, minha pequena. Você foi brilhante, brilhante como sempre.
Dando continuidade, agora vou chamar Maria Inêz Cardoso Magalhães, da ONG Rio de Paz. A palavra está com você, minha querida.

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – Bom dia, Vereadora Monica. Bom dia a todos e todas. Estou aqui representando o Antonio Carlos Costa, o nosso fundador, que infelizmente não pôde vir, mas sei que não faltará oportunidade.
Eu sou assessora da ONG Rio de Paz, muito conhecida pelos movimentos de manifestação pública que a gente faz em determinados casos de violência. Quero ressaltar a importância desse encontro, porque o desaparecimento é um assunto que não é falado na nossa sociedade.
A gente discute roubo de carro, tantas outras formas de crimes, mas do desaparecimento a gente não fala. Isso não sou eu que estou dizendo também, eu ouvi isso de um familiar, da Jovita Belfort, mãe da Priscila Belfort, desaparecida há 19 anos.
Ela fala uma frase muito interessante: “A sociedade não sabe o que é o desaparecimento porque não é discutido, não é falado”. Então, a gente vê isso todos os dias, em muitos casos.
A ONG Rio de Paz surgiu há 16 anos com um dos vieses sendo o da redução do homicídio. Direitos humanos, combate à pobreza e redução de homicídios. Dentro dessa luta pela redução de homicídios, a gente se deparou com o desaparecimento.
Quando o Antônio começa nessa militância, nessa luta, ele não conhecia nada de segurança pública, ele só estava muito impressionado com a matança que acontecia no Rio; e resolveu criar um movimento, porque uma coisa que a gente tem que ressaltar é que a sociedade também tem obrigação de lutar por isso.
A gente não pode achar que é um problema do outro, que a gente não faz parte desse contexto. A sociedade tem a sua responsabilidade, sim, nessa luta. E uma dessas responsabilidades é cobrar do governo as políticas públicas. Essa é a nossa parte, lutar por isso.
Esse ano esse tema foi melhor tratado, por nós, no documentário chamado “Cadê você?”, sobre o desaparecimento forçado. Por coincidência, eu estou entre dois personagens dele aqui, que é a Michelle, que fala sobre o Amarildo; e o André, do PLID, que fala sobre essa política do Ministério Público de localização de desaparecidos. Nós optamos por falar desse assunto e lançamos um documentário no dia dos 10 anos do desaparecimento do Amarildo. E nós também falamos não só do Amarildo como da Priscila, da Patrícia Amieiro, mas também de casos que não foram rumorosos, porque a gente sabe que é a maioria.
A gente fez um apanhado aí de outros personagens da Baixada Fluminense, principalmente que ninguém sabe, ninguém viu e não vai saber. Falou-se muito da ditadura aqui e, dentro desse filme, a gente também faz um recorte da ditadura, porque os métodos empregados hoje advêm desse período. Então, só para exemplificar, eu trouxe dois trechinhos rápidos no vídeo, do documentário. Um com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) já atualizados sobre desaparecidos. A gente tem um falando sobre essa parte quando o Antonio descobre essa questão dos desaparecidos dentro das comunidades e um trecho da ditadura. Aí, se puderem passar, depois eu continuo a minha fala.

(Exibe-se o vídeo)

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – É isso, eram esses dois trechinhos. Quando o Antonio fala do aumento do número de desaparecidos com o número de homicídios, a gente vê isso. A gente não pode afirmar que uma coisa seja consequência da outra, mas, ouvindo estudiosos e pela nossa vivência, a gente vê que o número de homicídios tem caído, à medida que o número de desaparecimentos tem aumentado. Então, há que se ter uma atenção nesses dados, e principalmente em áreas de milícia. A gente sabe que a milícia mata e oculta os corpos.
Então, essa questão da nomenclatura que você falou do desaparecimento forçado é uma questão também debatida no documentário porque está todo mundo no mesmo bolo. Se você pegar os dados do ISP de hoje, aqueles dados que a gente apresentou ali, de pessoas desaparecidas, o ISP não tem um recorte. Mas nessa nossa pesquisa, do documentário, a gente tem dados oficiais de que o Rio de Janeiro: só o estado tem 5.000 desaparecidos por ano.
Segundo a própria Polícia Civil, 10% desse total, seriam 500 de pessoas assassinadas pessoas assassinadas, cujos corpos jamais aparecerão no Estado do Rio – este é um dado oficial.
Então, é um assunto muito sério, muito grave e a gente resolveu, com esse documentário, trazer à tona essa discussão que a gente considera muito importante. O documentário está disponível no YouTube Rio de Paz Produtora, se alguém quiser ver, a gente colocou justamente para dar visibilidade a esse caso e promover essa discussão. Fora esses dados técnicos, a gente tem depoimentos fortíssimos de famílias que tiveram seus entes queridos sumidos, desaparecidos e assassinados, entre eles a família do Amarildo.
Michelle está lá e uma coisa que chamou também bastante atenção da gente é que o Estado e o Brasil não têm uma política sobre desaparecidos. A Delegada de Polícia da Delegacia de Desaparecidos do Estado fala: “não existe um banco de dados nacional, se uma pessoa some hoje, é carioca e some em Minas Gerais, a gente não vai saber” – o que é um absurdo, pois a gente está na era da tecnologia, em que todo mundo se fala o tempo todo, em qualquer lugar do planeta.
O André pode falar melhor disso, a gente não consegue um banco de dados nacional para ajudar nessa identificação. E dentro do próprio Estado o PLID trabalha de um jeito, a Polícia trabalha de outro, então é um assunto muito importante. Por isso, essa reunião hoje é fundamental para a gente debater esse assunto. A gente está nessa luta há muito tempo. A gente quer seguir com esse documentário para ajudar nessa discussão.
Agradeço a participação aqui, o convite e estamos à disposição, pelo Rio de Paz, para continuar nessa luta. Obrigada.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Maria Inez, obrigada. O trabalho do Rio da Paz eu conheci através do João, que foi meu parceiro há alguns anos trabalhando lá na Comissão. Hoje ele continua. Já comecei a admirar, porque era um trabalho muito voltado para pessoas que tivessem alguma passagem no Sistema Carcerário, no sentido de apoiar para a volta desse cidadão para a vida.
E também tem esse recorte nesse trabalho com desaparecidos, que é de uma importância muito grande e está se juntando a todos os já existentes, como Tortura Nunca Mais, com o Lucas Pedretti, enfim, nessa soma em que, de fato, de a gente tentar acabar com isso.
Então eu, por ser mãe de vítima, já participei de alguns documentários e sei o quanto isso é importante, Inez, no sentido de nos dar visibilidade para o mundo. Como você mesma falou sobre essa forma de comunicação, que é mundial, através do telefone, em qualquer lugar que a gente está, a gente fala com qualquer um, telefona. Então, esses documentários também têm essa importância.
Eu mesma digo que me tornei conhecida e reconhecida internacionalmente por conta de diversos documentários que foram com a minha cara e com a minha história por aí. Muitas pessoas vêm me procurar através disso, porque está tudo no YouTube, enfim, aí eles acabam assistindo e tem também o livro – para o qual o convidei, porque não dava para a gente convidar todas essas pessoas que você cito, o que seria muito importante.
Quem me dera ter um espaço e pudesse mesmo, para ouvir, não é só para trazer por trazer; é para serem ouvidas e porque esta Casa, se antes não aconteceu, nunca é tarde: tem que se colocar também dentro de todas essas situações existentes na cidade. Afinal de contas, a gente foi eleito para ser vereador da Cidade do Rio de Janeiro, não para ser vereador de Caxias, ou, enfim, de Irajá, de Botafogo, de não sei o quê, ou do biscoito, ou do doce, ou sei lá do quê. Não, é vereador da Cidade do Rio de Janeiro. Então, todos os problemas desta cidade interessam a todos os vereadores. É isso, não é?
Enquanto o Rio de Paz fez esse documentário, o Fábio Araújo, que também deveria estar aqui, mas teve um problema particular e não pôde, ele lançou um livro, enfim, como ele sempre foi parceiro da Rede contra Violência, desse lugar que deu origem de juntar todos os movimentos da época, está aí Mães de Acari, dentro desse guarda-chuva, para que a gente pudesse seguir na luta.
Então, o Fábio sempre foi um apoiador da Rede e foi um apoiador de nós todos; ele lançou o livro “Das ‘técnicas’ de fazer desaparecer corpos: Desaparecimentos, violência, sofrimento e política”, que, assim, eu estou dentro dele, diversas pessoas que você citou também estão; o Lucas o conhece, é um escritor e hoje é professor. Mas é isso, não viveu na pele, creio que nunca viverá, como o Lucas, mas se colocou, não é? É isso que eu digo, que são pessoas que constroem a sua vida pública, suas vidas acadêmicas, sua vida com o outro, suas famílias a partir da cultura anti-racista. Porque, de fato, é entender, se colocar. É não viver, mas entender. Não é sentir, porque sentir, ninguém vai sentir, ok? Ninguém vai sentir...

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – É aí que entra a sociedade.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso.

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – A responsabilidade da sociedade. Rio de Paz é uma ONG formada por pessoas de classe média branca, mas estamos na luta, não é?

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso.

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – Porque todo mundo faz parte desse contexto.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Claro, claro.

A SRA. MARIA INEZ CARDOSO MAGALHÃES – A gente faz manifestação em Copacabana, e raríssimas são as pessoas que passam e chegam junto com a gente. Elas passam como observadoras, como se aquilo não pertencesse a elas, não é? Então, isso é triste.
Só para complementar, quando você falou que é mãe, e para dar visibilidade, tem uma frase que me marcou muito na produção desse documentário. Eu sou a produtora do documentário, que tem direção do jornalista Humberto Nascimento, meu marido, a mãe, a Viviane fala, depois que a gente terminou de gravar com as mães, ela fala assim: “Obrigada por nos enxergarem”, porque ninguém vai lá para ouvi-las, não é? Elas têm uma rede de apoio das próprias mães que perderam seus filhos, elas que cuidam umas das outras. O Estado não chega lá, nem com o básico, quanto mais com apoio psicológico, e elas vivem esse drama.
E é isso.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso, exatamente, porque nem você, Inez, nem o próprio Antônio, nem Lucas, nem Fábio vão sentir o que eu sinto, o que Michele, o que Izildete, a própria Aline... Mas quando a gente vai para a luta, aqui todas temos uma fala só, no sentido de dizer “a gente não tem luta, a gente só tem luta”, é fazer com que não só vocês, enquanto pessoas brancas que são, diante dos privilégios, porque isso é real, não adianta negar, não é? É entender que isso não pode continuar a acontecer, somos seres humanos. É um absurdo sermos separados de políticas de sobrevivência, de direito, por conta de uma cor de pele. Isso é o absurdo do absurdo, mas que neste país existe.
Então, fazer todas essas ações, como o documentário, como o livro e como diversas outras coisas. Hoje, também tem aí Gislaine, enfim, todas essas pessoas que fazem essa cultura dizendo e mostrando o que é isso que vivemos, porque essas casas parecem que... A vida inteira, e hoje eu estou aqui, Inez, eu vejo, esta Casa está completando, completou, e está nesse ano inteiro falando sobre isso, tem 100 anos de existência. Aí, quando eu lanço uma comissão como essa, Comissão Especial de Combate ao Racismo, é a primeira, Inez, no Brasil. Era para eu soltar fogos, ficar feliz? Não. Isso é uma Casa que tem 100 anos. Que eu não sou a única preta. Mas que já teve outras pretas, e isso não foi possibilitado, isso é o racismo. Que em outras, como Alerj, não têm, é o racismo que impera.
Não dá para a gente ficar feliz por conta de conquistas, que já era para ter vindo há muitos anos. A gente é para entender que é isso: a luta nunca vai acabar, Inez, nunca.
Eu digo que – e, aí, eu já estou com peninha da minha pequena, que é a minha neta mais nova, tem quatro anos, o nome dela é Ana Mel. É igual a mim, mas é uma geração muito nova. Então, já viu o que vem por aí. Que, com certeza, com ela não vai ser assim. Esse é o que eu mirei, de fato, para acreditar, Lucas, que isso pode mudar. A Ana Mel não vai viver isso. Quando ela tiver na sua adolescência, isso, de fato, vai ter que ser diferente. Então, é o caminho que eu faço, porque senão a gente já tinha que ter desistido. Porque eu já tenho, de idade, quase 60...

A SRA. IZILDETE SANTOS DA SILVA – E se lutando, já está do jeito que está, imagina se não lutasse?

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Eu já tenho, de idade, quase 60; de militante, quase 20 anos. Eu tenho chorado muito mais do que sorrido. Isso é que é triste.
É sobre. Muito obrigada, Maria Inez.
E dando continuidade, oi, meu amor...
Deixa eu te falar. Mas Izildete, deixa eu te falar. Quando acabar aqui, aí, tu chama a Maria Inez, aí tu conversa com ela. Está bom? Então, isso, eu acho que você tem que saber sim. Eu não estou dizendo para não saber não. Tem que saber. Só para a gente seguir, porque a gente tem um horário para entregar a sala, está bom?
Agora, é o André Luiz de Souza Cruz, representante do Programa de localização e identificação de desaparecidos do Ministério Público do Rio de Janeiro. A palavra está com o senhor.

O SR. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ – Bom dia Vereadora. Obrigado pelo convite, a todos da Mesa. Eu vou tentar, entregar a sala.... Tem horário, qual é o horário, Vereadora? Só para eu saber, para tentar entregar a Sala. Ah, são 13 horas? Ah, então, não vai dar tempo não. Mas tudo bem.
Por que eu estou falando isso? Só para... Antes de começar a falar, especificamente, sobre isso, eu queria só fazer um relatozinho.
Todo mundo está falando aqui de várias datas. Eu comecei a trabalhar no Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, poucos dias depois do desaparecimento do seu tio. Eu tenho mais de 10 anos lidando com desaparecimento de pessoas, de qualquer tipo: todos os tipos. Nunca houve nenhuma política no Estado que tratasse todos os tipos de desaparecimento, ou que tentasse olhar para todos os tipos de desaparecimento. Porque no final das contas, todas as pessoas são importantes. Então, é claro que existem milhões de recortes possíveis, mas eu, só para falar, aqui, do que a gente está conversando, Vereadora, a gente não tem um problema, que é um problema, nem insignificante, nem pequeno e nem médio. Deixa eu fazer aqui um recorte, que eu achei, aqui, agora.
Fórum de Segurança Pública, ano passado, 2022: 47 mil, trezentos e poucas vítimas de morte violenta no Brasil; 74 mil desaparecidos.
E, aí, deixa eu fazer, aqui, uma boa ressalva com relação a isso, porque é importante que se faça. A fonte é muito boa, Fórum de Segurança Pública.
Pessoas declaradas desaparecidas. Ninguém vai a uma Delegacia de Polícia constituir um desaparecimento de ninguém, ou desaparecer com alguém na Delegacia. Pessoas vão lá declarar um desaparecimento. Quantas não foram? Eu não sei. E isso é um pouco do retrato. E eu vou pegar esse viés para a gente falar, aqui, mais especificamente sobre isso.
Tudo em desaparecimento é disfuncional. Tudo, absolutamente, tudo, em desaparecimento, disfuncional. Por quê? Porque nós estamos lidando com um problema que tem um pouco do passado, tem um pouco do presente, tem um pouco de falta de percepção do quanto que essas polícias... Essas políticas de desaparecimento se alteraram ao longo do tempo. Elas se alteraram ao longo do tempo. Elas têm um pouco do passado, mas elas se alteraram bastante ao longo do tempo.
E aí só para complementar a questão do dado, então, a gente está falando aqui, todos dados lá do lado do Fórum de Segurança Pública, taxa de mortes violentas é de 23.3 por 100 mil habitantes; de pessoas desaparecidas 32 por 100 mil habitantes, nacional. Não é um problema insignificante; no Rio de Janeiro, menos ainda.
Então, por que eu estou falando dessa questão da disfuncionalidade de absolutamente tudo. A disfuncionalidade vai desde a forma como esses desaparecimentos são, chegam ao conhecimento do Poder Público, até a forma, como é um dos pontos aqui a discutir como esses familiares são assistidos.
Por quê? Porque nós estamos olhando para o passado. A legislação de 2019 é uma legislação que foi constituída olhando para o passado, basicamente tudo que nós temos hoje olha para o passado. Então, todas as providências, e a gente tem olhado para isso, e, aí, é importante que se diga, o MP daqui do Rio, ele começou em 2010 a tratar desse assunto. Eu cheguei lá três anos depois e é muito esquisito até hoje, Vereadora, ver que as pessoas se surpreendem com a visão que o Ministério Público criou sobre um problema. Mas é natural que as instituições como essa Casa, por exemplo, criem suas visões quando elas começam a se envolver sobre o problema.
E aí isso só para falar sobre essa questão das visões, eu preciso ter intimidade com 22.600 desaparecidos, que é o número que eu tenho lá hoje para olhar. Seja qual for o problema. Eu preciso saber se o familiar está precisando de alguma coisa. Ah, o Ministério Público vai substituir o Poder Público e fazer isso não? Não, não vai. Mas o Poder Público tem meios para fazer isso e o problema é como inserir essas pessoas nesses mecanismos que vão tratar deste problema.
E aí a maior disfunção, Vereadora, me parece ela está exatamente no fato de que nós continuamos fazendo uma política pública de segurança pública para pessoas desaparecidas. Quando eu digo de segurança pública é, exclusivamente, de segurança pública.
Esse parece o maior problema que nós enfrentamos, que vai desde o registro policial. Se a pessoa não pode ir à delegacia declarar o desaparecimento de alguém, ela não está desaparecida. Porque o Poder Público não tomou conhecimento através da porta da delegacia de polícia que alguém desapareceu. Há uns 15 dias atrás eu.. Vereadora, eu me coloco à disposição para a gente conversar depois sobre casos, situações concretas, mas, enfim, acho que não é um ambiente para isso, até por conta da transmissão.
Mas há uns 15, 20 dias atrás, eu recebi um telefonema de uma mãe que foi embora com a família inteira para São Paulo, o desaparecimento aconteceu em 2014 e ela nunca tinha falado para ninguém do Poder Público que isso aconteceu.
Por quê? Então você pega, aí eu falei: olha, a gente não tem sequer aqui o registro policial, porque é um registro antigo. Ela falou: não adianta pedir, porque não tem nada lá. A senhora acha que alguém vai a uma delegacia de polícia declarar que o filho desapareceu por conta dos relatos que nós estamos tendo aqui? É sério? Não, não vão. Porque vão sumir no dia seguinte. Ela teve que pegar a família dela inteira e ir embora do Rio de Janeiro e, 2014, eu estou falando aí de 9 anos, dez anos praticamente, depois, ela se sente segura para relatar o que aconteceu em 2014.
Nós temos um problema que é um problema disfuncional. Totalmente disfuncional que começa com a própria política pública ser uma política de segurança pública. Então, esse é um dos pontos aqui importantes.
Aí eu vou pegar dois aspectos aqui que me parecem relevantes. E, mais uma vez, eu vou tentar entregar a sala. Quais são os dois aspectos que eu acho que são bastante importantes e olhando aí para a questão do desaparecimento forçado.
Nós temos um desaparecimento forçado hoje do dia a dia, e, aí eu estou conceituando aqui, pegando desaparecimento forçado tal qual está previsto na convenção Interamericana e o que o Brasil internalizou. Então, veja: não há nenhum óbice hoje, hoje, no dia de hoje e alguns anos para que o Estado seja responsabilizado pelo desaparecimento de uma pessoa. O que não há, e, aí, tecnicamente, é um crime para responsabilizar um agente criminalmente. Então, o Estado pode responder administrativamente, o agente pode responder administrativamente, o Estado pode responder por improbidade administrativa, o Estado pode responder por responsabilidade civil. Eu vou nominar só com o primeiro nome: Gustavo. Gustavo desapareceu onde? No Hospital da Fiocruz. No hospital da Fiocruz, foi lá que ele desapareceu. Internado lá, depois sepultado. “Ah, mas não é vítima da violência”. Mas não foi o Estado que sumiu com ele, porque sepultou o corpo e não comunicou à família que ele tinha falecido.
Nós levamos 555 dias para tomar conhecimento de que isso aconteceu e comunicar á família de que o Gustavo tinha desaparecido. Estava falecido, já tinha sido sepultado. Parece esquisito isso, mas todo cemitério público, no Rio de Janeiro, tem um pedaço de desaparecido, todos eles, sem nenhuma exceção, porque os corpos são distribuídos entre todos eles.
No Rio de Janeiro, a gente apura no programa. Anualmente, ele tem algo entre 600 corpos e 700 corpos não identificados, tirando aqueles identificados que há dúvida se a família tomou conhecimento do óbito ou não, que é outro tanto desses. O Gustavo estava totalmente identificado, mas o Estado fez o desfavor para a família de sepultar o corpo dele sem comunicar o óbito. A minha pergunta é: desaparecimento forçado? Parece que sim.
Precisamos, obviamente, buscar essa criminalização do agente, precisamos buscar essa responsabilidade desse agente. Mas devemos começar, inclusive para buscar essa responsabilização do agente criminal, a responsabilizar o Estado instantaneamente. A família do Gustavo foi orientada a processar o Estado, está processando o Estado. Pediu de indenização R$ 600 mil, o que acho muito pouco.
A senhora Rosana faleceu, estava desaparecida no Souza Aguiar, e o corpo dela foi doado para estudo científico, para uma faculdade de medicina. Eu não estou falando nada de surpreendente, gente, isso acontece aos montes por aí. Se nós tivemos um caso, é porque tem aos montes, e tem mesmo. Quantas faculdades de medicina há no Brasil? Quantos laboratórios de anatomia? Então, o corpo dela foi parar numa faculdade de medicina, por desaparecimento do Estado. Se foi por negligência, ou o que seja, isso não importa. A responsabilidade é do Estado.
Essa família nunca se recuperou disso. Recebeu a informação de que uma familiar desaparecida em 2016 tinha morrido, e eu só consegui comunicar isso quase em 2019. E aí vai buscar o corpo na faculdade de medicina, com tantos anos, mexido. Não se recuperaram, e nós precisamos dar atenção para essa família, porque ela não vai se recuperar disso. É desaparecimento forçado? Parece que sim.
Cosme foi preso, não foi comunicado. Foi transferido, não foi comunicado. Foi vítima de homicídio no sistema prisional e não foi comunicado. Foi sepultado, não foi comunicado. Nós comunicamos o falecimento do Cosme muitos anos depois, tendo que explicar. Quando eu falo que estou desde 2010, desde 2013 lidando com esse problema, é lidando com esse problema no dia a dia, ouvindo essas pessoas, tentando entender o que aconteceu, tentando dar alguma explicação para essas pessoas do inexplicável, porque tudo que eu estou explicando aqui acontece. Mas, olha, é difícil você sentar à mesa e ter que dizer para alguém: olha, o que aconteceu foi isso. A primeira sensação, como sou agente de Estado, é que sou culpado daquilo também.
Então, o Ministério Público se tornou culpado dessas coisas, e o Ministério Público tem feito bastante nesse sentido.
Só vou fazer uma ressalva à sua fala. Não é uma crítica, não. Eu ouço isso diariamente e me recinto muito de ouvir isso, Vereadora. O Brasil não tem um sistema nacional ou um cadastro nacional para quem não quer. Em 2010, o Ministério Público fez um investimento, o Ministério Público do Rio de Janeiro foi a única instituição no Brasil que fez um aporte financeiro para desenvolver uma ferramenta de tecnologia que pudesse permitir o que a colega acabou de falar aqui. Foi em 2010.
Em 2018, o Ministério Público tornou esse sistema em Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos, que é oferecido a todos os órgãos públicos: universidades, câmaras de vereadores, para que a gente possa, de fato, construir. Porque enquanto continuarmos esperando uma providência, pode ser divina ou de algum outro divino que queira tomar essa providência, isso não vai sair do papel.
Então, nós temos pessoas desaparecidas do período ditatorial nesse sistema, para quê? Ficarão lá. O caso do seu tio, Michelle, nunca foi arquivado dentro desse sistema – e não será. Não será porque o nosso sistema de tratamento de desaparecimento não é disfuncional.
Então, veja – e aqui nunca estou fazendo crítica aos institutos, mas é soberba demais entregar uma certidão de morte presumida para alguém e achar que isso substitui a localização do corpo dessa pessoa. Isso é soberba do Estado. O Estado acha que, fazendo isso, está dando a satisfação necessária, e isso me preocupa muito.
Quando nós tratamos do desaparecimento, sob o viés exclusivamente de processo penal – e aí é minha área de formação, então sempre falo que o processo penal tem um objetivo, que é penalizar quem praticou o mal feito. Feito isso, acabou. Eles não esperam, o Estado não espera que haja uma resposta posterior a essa.
Eu paguei a indenização e eu coloquei na cadeia quem fez. O que mais que você quer? Eu sei o que você quer. Todo mundo que lida com desaparecidos, com pessoas desaparecidas quer, e nós precisamos saber o que elas querem. Elas querem achar. Elas querem resposta, elas querem achar.
Nós criamos um mecanismo, que não permite o arquivamento de nenhum desaparecimento até que a pessoa seja encontrada. Patrícia Amieiro está lá, seu tio está lá. Mas, André, o que vai acontecer? Eu não sei. O que eu posso garantir é que em mais de 22 casos o dele vai permanecer lá enquanto não for encontrado, porque a resposta que deram para sua família e para muitas outras famílias não vale.
Vereadora, eu vou aproveitar aqui o gancho da senhora dos três meninos desaparecidos de Belford Roxo, eles continuam desaparecidos. Quando houve aquele problema lá em Brumadinho, eu fui para lá, a pedido do Procurador-Geral aqui do Rio, em apoio ao Ministério Público de lá, para tratar dessa questão do desaparecimento e para tentar, de alguma forma, utilizando o sistema nacional para colaborar.
O Corpo de Bombeiros de Minas Gerais está até hoje procurando aquelas pessoas, entregando fragmento de corpo para a família, mas entregando alguma coisa. Qual é a diferença? Merecem mais? Tem alguma ação hoje no Rio de Janeiro procurando os três meninos de Belford Roxo? Eu desconheço, pode até ter, mas eu desconheço. Qual é a diferença? “Ah, porque a circunstância é determinante”. Não, não é determinante. A cor da pele é determinante? Eu estou falando não é determinante, mas é retórico. Não, não é determinante. Eles continuam lá no sistema e continuam lá no programa, até que a gente tenha alguma informação.
Portanto, esse sistema tenta tratar – e aí, olhando um pouquinho para o seu recorte, inclusive, e, veja, a gente lida com pesquisas o tempo todo –, tentar estabelecer uma forma de coleta de informação e de percepção do fenômeno tal qual ele acontece hoje.
E aí, é muito importante dizer isso, Vereadora, se nós olharmos o desaparecimento de 2023 pelo retrovisor, ou muito pelo retrovisor, não estou falando para esquecer, estou falando muito pelo retrovisor, o nosso risco é, assim como acontece com a escravidão moderna, ficar procurando grilhões de ferro. Eles não existem, os grilhões hoje em dia são outros, mas eles estão aí, e é só ajustar um pouquinho o olhar que a gente percebe.
No caso do desaparecimento de pessoas, eu trouxe três exemplos aqui, que muito provavelmente ficam fora do radar da maioria das pessoas, e que acontecem todos os dias. Tem um Gustavo todo dia, tem uma Rosana todo dia e tem um Cosme todo dia.
Então, nós precisamos ajustar este olhar para perceber que não dá para procurar grilhão de ferro, porque nós não vamos encontrar. Para isso, existe essa questão, por exemplo, no caso de escravidão moderna, na legislação, de condição análoga.
A condição análoga à escravidão é uma condição que nos leva a perceber que em determinadas circunstâncias, por exemplo, a pessoa pode estar aprisionada pelo fator econômico, ou coisas do gênero. No caso do desaparecimento, nós concebemos um critério, dentro do sistema nacional, que eu reputo seja equivalente a isso, que é a pessoa localizada em situação indicativa de desaparecimento.
Então, todo corpo não identificado é uma pessoa localizada em situação indicativa de desaparecimento. Todo corpo sepultado pelo Estado sem que a família tome conhecimento ou, se houver dúvidas disso, é uma pessoa localizada em situação indicativa de desaparecimento.
É claro que, no Rio de Janeiro, há cemitérios clandestinos; é claro que, no Rio de Janeiro, tem os porcos; é claro que, no Rio de Janeiro, tem tudo isso. Mas, no Rio de Janeiro, tem um sistema inteiro que permitiria desaparecer com pessoas formalmente, cumprindo todas as formalidades. Eu não estou dizendo que isso é feito deliberadamente, em todos os casos, mas há uma omissão muito grande. Há uma dificuldade muito grande de entender, por quê? Porque nós continuamos procurando os grilhões de ferro. Eles não existem mais, ou não existem em sua maioria. A gente precisa começar a olhar.
Só para finalizar, Vereadora, eu me coloco e coloco o programa à disposição da senhora para tratar desse tema e olhar algumas situações mais específicas. Eu me coloco à disposição da senhora.
Obviamente o sistema de pessoas desaparecidas foi criado para ser plural e para receber todos os casos de desaparecimento, seja para o que for; para ouvir a todos e para tentar criar alguma lógica de compreensão desse problema. É um problema complexo, extremamente complexo.
Se nós não tivermos dados que nos subsidiem uma boa política pública, o que vai acontecer é que nós vamos sair com políticas públicas do outro lado, em que o Estado dará a pior satisfação para as famílias. Aquela que ele acha que é conveniente. Eu pessoalmente não acredito nisso e trabalho diariamente para que isso não aconteça.
Então, hoje eu tenho muita dificuldade de entender que o Brasil tal qual está hoje tem amadurecimento para tratar do desaparecimento, para legislar sobre o desaparecimento forçado, porque sairá uma legislação tão ruim quanto é a legislação de desaparecidos de 2019. Ela é péssima, ela é uma legislação disfuncional, feita com foco em segurança pública. Isso é um equívoco grande, muito grande.
Obrigado mais uma vez. Eu fico à disposição para responder a perguntas.

A SRA. MICHELLE LACERDA – Desculpa, só para dar uma resposta mesmo. Obrigada pela sua fala, pelo que você traz aqui.
Sim, o que a gente quer é fazer o enterro do corpo do meu tio, mas a gente também quer uma condenação criminal para Dilma, que era Presidente, na época do desaparecimento; para o Sérgio Cabral, que era o Governador; e para o Eduardo Paes, que era nosso Prefeito, há época do desaparecimento forçado do meu tio. Porque não dá para a gente brigar na rua e condenar os policiais que são o braço armado e não condenar os mandantes. Esses caras eram os mandantes à época, assim como nas chacinas hoje. E os outros governadores e prefeitos continuam sendo mandantes e exterminadores da nossa população negra.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É isso. Senhor André, primeiro, muito obrigada pela sua fala, muito obrigada mesmo. Muito esclarecedora.
Vou de novo falar que vem ao encontro de um nome aqui do livro do Fábio Araújo, não sei se o senhor conhece, das técnicas de fazer desaparecer corpos. É
sobre isso o que o senhor falou.

O SR. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ – Posso fazer uma provocação para a senhora?

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Sim.

O SR. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ – Dos três personagens que eu falei aqui, a senhora me diga, lhe dou meia chance de a senhora acertar qual era a característica.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Não preciso de tanto tempo. Então, é sobre isso, é sobre isso, é sobre a sua fala, sobre o que o senhor ouviu aqui que nasce essa Comissão. É por isso que eu estou aqui nesse lugar exercendo essa função enquanto vereadora. Porque fizeram comigo e aí eu fui entender.
Não que eu entenda e que eu ache que toda vez que fizerem com alguém... Não, não é por aí. Mas a minha fala, a minha cara, a minha cor tem que chegar em outros lugares que não chegou isso que o senhor colocou. Todas essas situações, todas essas pessoas, para que elas entendam o motivo real de a gente viver todas essas violações. Porque as pessoas têm que entender, Doutor André, por que passamos por isso.
Os seres humanos não sabem. O que a Michelle acabou de falar, aqui nós fizemos, no mês de abril, 20 anos da Chacina do Borel. O senhor já deve ter ouvido falar, porque tristemente essas chacinas são todas conhecidas, tristemente.
E aí, essa fala de Michelle foi a fala de algumas mães, que achei muito interessante, isso está gravado como tudo que acontece aqui, e eu faço questão que fique, não foi adiante, mas mediante essa fala de Michelle aqui, porque é tanta coisa que a gente tem que dar conta, que a gente vai pulando etapas, que as mães falaram que a gente teria que falar sobre todos os governadores e prefeitos que estavam na época dos assassinatos dos seus filhos, ou do desaparecimento dos filhos.
Porque é isso mesmo, eu também digo isso. O meu filho foi assassinado, a gestão do Brasil, o Presidente do Brasil era o Lula, que também está na sua terceira passagem. O Governador era o Sérgio Cabral, e não me venha com a conversa de que ele se tornou um adolescente autor de ato infracional e que aquele corpo é “matável” – não! Ele tem que me dar conta! E até a data presente de hoje, que vão completar 17 anos, quando completou três anos, porque agora vão para 17 anos... eu queria ter cremado e não pude, porque ainda estava no processo, e eu nem sabia. Isso é uma das coisas que de pior acontecem, eu nem sabia... eu só soube porque queria cremar o corpo do meu filho – e aí, quando chego ao cemitério, aí que ele me mostra. “Não, você tem que ir para a delegacia do bairro onde aconteceu, e a senhora vai entender”.
Quando eu cheguei lá, tiveram audiências, ele foi assassinado no dia 6 de dezembro de 2006, tiveram audiências desde... Acho que foi... Começou em janeiro, se não me engano. Eu tenho tudo anotado lá em casa. Eles nunca me chamaram. “A senhora não compareceu...”, Como é que eu ia comparecer, se eu não sabia. Eu não recebo a entidade de Mãe Dináh... eu não ia adivinhar...

O SR. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ – A senhora veja o quanto isso é disfuncional. A vítima... A senhora é vítima...

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Sim.

O SR. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ – A senhora é vítima. O quanto que a vítima não faz parte dos procedimentos que apura essas questões. Esse é o ponto. Isso é disfuncional, porque nós desprezamos essa questão de que eu tenho uma mãe vítima, de que eu tenho um familiar vítima, de que eu tenho essas pessoas que são vítimas, e o Estado, mais uma vez, por soberba, quer se substituir nessas mães, nesses pais, nesses familiares.
Ele entende que a formalidade cumprida, pronto, eu substitui a vontade daquela pessoa. Mas deixe eu só explicar por que isso é assim. Porque na seara criminal, nós tratamos isso assim. Nós vamos a uma delegacia de polícia, dizer que o celular foi roubado, e nós entregamos para a polícia a responsabilidade para apurar aquele crime. Vamos passar nas Casas Bahia, comprar outro celular, e a vida segue em frente.
Não dá para fazer isso com familiares. Essa é a grande diferença, e a disfunção está exatamente nisso. Então, assim, nós jogamos esse problema dentro de um trato que é um trato ordinário de crimes. Então, se eu tenho um crime, o crime será apurado e alguém será responsabilizado, e o papel do Estado termina aí. No caso de desaparecimento, não dá para terminar aí.
A senhora precisa de todo um acompanhamento para o resto da vida, e não dá para dizer, “Não, mas eu já fiz o meu papel”. Não, não fez. Simples assim.

A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – É porque somos vistos, olhados e entendidos como coisas. É isso. Eu sou uma coisa, isso aqui vale muito mais do que eu, muito mais. Então, é por isso que eles entendem dessa forma. Por isso que, quando eu entrei, estou nessa luta, eu comecei a entender, porque até então também eu não entendia. Quando você percebe que não é só o policial civil que atirou de fuzil no meu filho, porque ele tem que ser responsabilizado, mas não é ele o culpado. Mas é isso aí você percebe que a luta, doutor, é muito maior do que você imaginava.
Então, o meu lugar aqui, nesta Casa Legislativa, é para que outras pessoas, de verdade, primeiro, que nós tenhamos este momento, como o senhor está dando aí essa fala, essa colocação do que é esse sistema. Primeiro é isso, é a gente fazer o Ministério Público, que é um órgão fiscalizador, estar junto, estar nos ouvindo, estar nos vendo, fazendo essa aproximação, porque isso a gente sabe que também é difícil.
Quando a gente fala desses três meninos, vou voltar aqui rapidamente, de onde saiu? Além de serem negros, o que a gente já sabe, as famílias todas, e eu conheci todos, eu fui às casas, são de famílias totalmente paupérrimas, faveladas. Sabe? Não estão com roupas adequadas, na sua maioria, e aí como é que faz para ir em um órgão desses?
Eu estava na Comissão e eu tive que descer para bancar a entrada, porque eu faço assim, aqui é a mesma coisa. Quando eu fiz uma escuta com os Creas para falar de medidas dos meninos também, uns não tinham documento, porque o senhor sabe como funciona, e outros estavam de short porque não tinham calça. Eu falei: “Não, não tem como, aqui ninguém tem calça para emprestar a eles, e eles vão ter que subir. Isso aqui não é a Casa do Povo? Isso aqui é a Casa do Povo, e esse povo é o quê? Ah, não é daqui, não? É sim, é sim”. Não pode estar no registro somente para ter construído essas paredes, tem que usufruir, tem que sentar nessas cadeiras.
Então, eles entraram. Isso tudo é dificuldade, é disfuncional, como o senhor acabou de falar, tudo isso, mas isso tudo é uma política desde sempre, é uma política de morte, é uma política, como o senhor colocou, de Segurança Pública, mas de afastamento – “Você lá e eu cá. Eu já te dei a certidão de morte presumida, eu já arquivei lá o seu caso”, como no meu caso, “e o que é que tu quer mais, cara? Era bandido, não consegui, está aí, pronto, vai viver tua vida”. Eles só não contavam, Doutor André, que eu ia fazer dessa forma porque o que eles tinham como certo era, a partir daquela declaração de arquivamento, que eu enlouquecesse e automaticamente eu morresse. Não, não, não, não, não; eu até sei que eu vou morrer, até sei que não estou realmente mentalmente maravilhosa, mas eu ainda vou dar muito trabalho a esse povo. Eu estou há mais de 20 anos dando e eu vou dar ainda mais, disso eles não tenham a menor dúvida.
Eu digo sempre: “Não me tiraram um brinco, não foi um brinco que eu perdi, que cotidianamente eu perco, foi um filho que eu pari, que eu gerei, que eu criei, que eu vi chegar aos 20 anos”, como a Aline ali falou, que a mãe dela dizia e eu conheço, conheci muito Marilene e Vera, “Eu pari”. É sobre isso. Parir não é mole, Doutor André. Então, eles vão ter que me aturar e todas as outras que eu puder botar aqui dentro.
Muitíssimo obrigada, muito obrigada pela sua fala, e obviamente o gabinete 902 aqui está totalmente à sua disposição, como à disposição de qualquer um aqui dentro, eles sabem disso, para a gente conversar e pensar em algo mais que podemos fazer nessa esfera, porque eu sei que podemos fazer muito nessa esfera, não podemos dar jeito em tudo, mas podemos fazer, ok? Muito obrigada.
Agora, já partindo para o final, nós vamos ouvir o Senhor Luiz Henrique, do Programa SOS Desaparecido, da Fundação da Infância e da Adolescência (FIA).
A palavra está com o senhor, obrigada.

O SR. LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA – Obrigado, Vereadora Monica Cunha. É um prazer imenso. Por duas vezes eu tive que me ausentar aqui da sala, porque o telefone não para. Aqui, sob a minha responsabilidade, eu recebo todos os registros de ocorrência policial e notificações. Então, eu fico com essa função, além de gerenciar o programa; fico com essa responsabilidade 24 horas, para que a gente possa dar um atendimento, um acolhimento a essas famílias que passam por essa dor imensa e traumática, que é o desaparecimento de crianças, adolescentes e jovens.
Fico aqui com a primeira fala da Senhora Victória, do Lucas. O Lucas me traz uma questão muito interessante, da tipificação. Eu acho que a gente precisa, na realidade, entender esse tipo de desaparecimento, até mesmo no ato da emissão do registro da notificação, é preciso a gente padronizar bem, assim, já na delegacia, porque o agente policial, às vezes, ele entende da forma que ele quer, e tipificar desaparecimento é uma complexidade imensa.
A gente tem que entender que somente após a localização é que se tem a real certeza de que fato, em que circunstância realmente se deu esse desaparecimento. Então, eu fico muito preocupado com este projeto de lei que você cita lá, preciso saber o número para que a gente possa também trazer algumas contribuições.
A Aline Leite, também de Acari, me lembro bem desse fato. Já tem alguns anos, Vereadora, eu sou desde 88. Não, bem mais antigo, porque quando eu saí da Escola XV de Novembro, da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), sou ex-aluno de lá, e a gente pôde trabalhar com o Centro de Articulações de População Marginalizada (Ceap), inclusive tínhamos lá o Ivanir dos Santos, que era o Presidente, e a gente sempre trabalhou em prol dessas crianças. Fomos os primeiros a denunciar o extermínio de crianças aqui no nosso Estado do Rio de Janeiro.
A Dona Izildete, também fico muito... eu não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente. Michele Lacerda, também não a conheci antes de hoje. A gente sempre se falou pelo telefone, muitas ações ali na Rocinha, muito desaparecimento de crianças e adolescentes, e Senhora Michelle sempre ligou, e com o mesmo toque de simplicidade, de acolhimento dessas famílias. A gente sempre esteve atento ao chamamento da Senhora Michelle Lacerda.
Inês, então, não posso deixar também de destacar. Maria Inez sempre trabalhou com parceria com a nossa Fundação para a Infância como jornalista e mais agora com o Rio de Paz.
André, então, também posso destacar, até porque o nosso sistema de cadastro, vereadora, hoje, cadastrando na FIA vai direto para o Ministério Público Estadual, para o Federal e para a Defensoria Pública. Então, todos que passam, que chegam até a FIA, o cadastro já descentraliza algumas informações, para que todos possam entender que a questão é coletiva, a questão é muito séria.
E desaparecimento é isso, Vereadora. Eu acho que essa Comissão aqui tende a ter outras reuniões com essa temática. Peço, solicito a Vossa Senhoria que se possa deixar outro momento em que a gente possa não só ouvir essas famílias, mas deixar que a gente possa caminhar com algum planejamento, algum conjunto de ideias, como já foram formadas em três cartas do Brasil: Carta de Rondônia, Carta de Brasília e Carta do Rio de Janeiro, que foram encontros nacionais, e nesses encontros nacionais, a gente elencou várias ações para que o Brasil pudesse ficar atento e definir políticas públicas. Infelizmente, a essas cartas não foi dada toda a importância necessária.
Vou, inclusive, aqui falar dessa questão de Brasília, do Cadastro Nacional, porque o cadastro é uma das coisas de que participei da Rede Nacional, e uma das coisas que me deixou muito triste, desde o início, a gente vinha falando sobre isso, que é a questão do cadastro, ele fica numa base de dados do Ministério da Justiça, e quem faz a política toda é Direitos Humanos.
Então, fica muito desconforto, não é? Essa questão de rede trabalhar, redes são muito importantes, porque tem que ter um animador direto, pessoas com prática, pessoas que possam promover, não deixando de entender que cadastro precisa ser promovido, ele precisa ser discutido, ele precisa ser oferecido às universidades, às pessoas fazem toda uma política de conhecimento, de enfrentamento. E Brasília, alguns anos atrás, teve esse cadastro, mas não soube trabalhar bem o fomento, a divulgação necessária, e resultou num grande erro que nessa questão de cadastrar. Ele se descentralizou de uma forma em que todas as delegacias teriam direito, dever de cadastrar, mas isso não se deu.
Portanto, é preciso, também, enfrentar essa questão de cadastramento, para que cadastrar, só para dizer números, e não definir ações concretas, que possam diminuir ou enfrentar essa questão. Claro que eu quero ter mais tempo para falar disso. Mas eu peço que seja realizada outra audiência para que se defina bem e se faça um enfrentamento dessa questão.
Tem vários outros assuntos. O André até colocou muito bem. A gente ficaria aqui duas, três horas falando, e ainda não se conseguiria falar tudo. A Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) avançou muito, muito! Desde 1996, a FIA, juntamente com aquela novela Explode Coração, da Rede Globo, a gente definiu como uma ação de enfrentamento. E essa questão que está lá definido no art. 87, IV: “criação de um serviço de identificação e localização de crianças”.
Então, a FIA acolheu essa ação. Desenhou-se um projeto inicial muito bem estruturado, inicialmente, e com pessoal qualificado, que estamos praticamente há 28 anos juntos. É uma equipe que já tem profissionais se aposentando, a maioria. Eu, na realidade, a senhora falou a sua idade, eu fiquei aqui até com ciúmes. Eu estou com 64, vou fazer 65, já tenho muitos anos de enfrentamento dessas questões sociais.
Mas eu digo que a FIA tem um serviço de qualidade, hoje, isso eu posso lhe dizer, pelo menos de acolhimento dessas famílias, de escutar essas famílias, de promover um serviço de qualidade. Isso eu posso lhe afirmar. A nossa Fundação vem fazendo isso com todo capricho, com todo entendimento, com vários parceiros envolvidos, Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid), Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid), delegacias, Ministério Público e sociedade civil e, principalmente, os meios de comunicação. A gente enfrentou não só o cadastro do acolhimento, ajudando no atendimento psicossocial a essas famílias, mas a gente definiu algumas estratégias de poder entender e poder trazer de volta algumas crianças e adolescentes.
Eu quero também destacar, antes de falar um pouco da divulgação, falar com o nosso Rio de Janeiro, aqui, esta nossa cidade. Ela tem uma questão que me chama muito a atenção neste período de verão, Vereadora.
Estamos chegando ao verão, e a gente precisa fazer algumas ações de caráter preventivo, política de identificação das crianças, seja por meio da questão das pulserinhas, seja por intermédio do incentivo da cultura da identificação. O Rio de Janeiro é uma porta de entrada e de saída. Tem Carnaval, tem réveillon, tem praia superlotada.
Só para a Senhora ter ideia, em 1997, a gente mapeou que no litoral do Rio de Janeiro, e durante o Carnaval foram computadas 610 crianças, só naquele período de carnaval, em 1997. Dentro do litoral do nosso Estado. Crianças ficaram perdidas! Crianças, que a gente classifica com o tipo de desaparecimento temporário.
Esse desaparecimento temporário também precisa ter uma política de enfrentamento, uma política de prevenção. Inclusive, vamos fazer agora, na Rodoviária Novo Rio, dia 11, agora, dia 12, no Dia das Crianças, vamos para a Rodoviária, também, falar um pouco dessa questão, desse tipo de desaparecimento em nossa cidade. Vamos incentivar as pulserinhas! As pulserinhas estão aqui, basta o nome, o telefone, colocar, fazendo com que a conscientização se dê por meio da identificação dessas crianças, isso ajuda muito, Vereadora.
É uma política de tentar acolher e tentar dar um caminho, caso ocorra o desaparecimento temporário, essas pessoas possam, esses familiares possam entender o que fazer nesse momento.
Isso eu quero destacar, porque o Rio de Janeiro tem essa classificação, tem essa situação muito emergencial, mas que precisa ser acolhida com ações de caráter preventivo.
Na questão do serviço, eu vou tentar falar um pouquinho aqui. A FIA, já nesses anos todos, vem entendendo um pouco dessa questão do desaparecimento. Claro, a FIA não fica com a responsabilidade de tentar inquirir essa família, ela passa por um atendimento de qualidade ali naquele primeiro momento, de acolhimento. Essas famílias relatam algumas situações que a gente acolhe no prontuário. Esse questionário, naquele primeiro momento, não é preenchido totalmente, até porque essa família vem com uma dor muito forte e para ouvir essas famílias, a gente entende que, naquele primeiro momento, não se dá todo o preenchimento desse questionário social.
Mas é preciso a gente entender que, já no primeiro momento, a gente acha que é um atendimento até continuado, viu, André? Até porque não tem só no primeiro dia, tem no segundo dia, tem uma estratégia também de participação da população através do Disque Denúncia.
A gente tem uma central em que a gente troca as informações diárias com a população. Então, a cada dia que a gente começa a divulgar e dá visibilidade ao desaparecimento dessas crianças, a gente tem informações diferenciadas e isso nos ajuda bastante.
Eu acho, inclusive, voltando à questão do Lucas, que a gente poderia também afirmar e solicitar que os registros e as notificações de registro policial poderiam ter um padrão específico; registrando todas as circunstâncias, inclusive, até a questão de gênero, de objetos, qual o local. Esses dados para mim, nesse primeiro registro, acho que o Estado ainda não conseguiu fazer com que essas informações possam ser acolhidas, naquele primeiro contato com as delegacias. Fora ainda a subcultura, que tem que esperar 24 horas, 48 horas.
A Lei nº 11259 é federal e nunca teve lei nenhuma que dissesse que tinha que esperar 24 horas. Acredito que sejam os filmes americanos e essa cultura se deu em todo país de esperar 24 horas, 48 horas.
Então, a gente foi lá, em 2005, a gente através desse comitê, dessa rede SAP, e conseguiu fazer com que a lei da busca imediata pudesse ter uma visibilidade que, até o momento, a gente não conseguiu fazer com que ela pudesse ter toda a significância. A ideia inicial é fazer o registro e as buscas começarem a ser feitas pela autoridade e comunicação aos aeroportos, rodovias, mas a gente não conseguiu isso.
Isso é um processo cultural que a gente tem que desconstruir, inclusive, com algumas famílias também, achando que não tem a necessidade de ir lá naquele primeiro momento. Mas a gente, tendo essa situação toda, na FIA, promove a lei da busca imediata, fazendo com que ela seja cumprida e seja apreciada.
Porque eu entendo que, naqueles primeiros momentos, naqueles primeiros meses, que a gente consegue dar uma visibilidade à imagem e às fotos, inclusive, dos meninos de Belford Roxo.
Eu fui o primeiro, não quero me promover, nada disso, mas as famílias me ligaram por volta de 10 horas, eu falei com uma madrinha dos três meninos, não era nem madrinha, era uma pessoa que morava na comunidade e a gente conseguiu recolher as três fotos. Primeiro, a gente promover um cartaz individual e depois, o primeiro entendimento nosso era fazer com que aquelas fotos daqueles três meninos pudessem ficar juntas. Tive que pedir alguém lá de informática, mas a gente culminou com esse cartaz único com as três fotos.
Esses três cartazes foram importantíssimos. Esse cartaz único com as três fotos deu uma visibilidade nacional. Por quê? Eles são três crianças de Belford Roxo, do Estado do Rio de Janeiro, e gente ficou muito preocupado, já no início do desaparecimento.
A gente teve uma dificuldade muito interessante, que a senhora destaca, Vereadora, que foi a questão de acolher as famílias. Eram famílias que tinham todo o uma situação traumática, eu lembro bem. Eu não conseguia nem sequer ter identificação dessas crianças. Mas eu tenho do Lucas, tenho de todos eles aqui. No dia seguinte a gente conseguiu, mas, no primeiro momento, a FIA teve uma habilidade muito interessante, até porque os familiares não conseguiram fazer o registro imediato. Eles foram lá à delegacia de homicídios da Baixada. Eu me lembro bem, eu falei: não importa, vamos fazer o cartaz, sim. Desde que vocês me autorizem a divulgação dessas imagens, a gente vai conseguir e conseguimos mobilizar o Brasil todo, com um cartaz único. Não se obteve a resposta imediata no que queríamos, que era identificar. É bom colocar o que o André está mencionando. Sistema de Cadastro da FIA – hoje temos seiscentos e poucos casos ainda desaparecidos, mas temos 3.722. Aqueles que já conseguimos, nesses últimos anos, ficam separados, ficam lá como localizados, não se dá mais visibilidade. Mas aqueles que ainda estão desaparecidos, vão ficar eternamente ali. Não se deve... Inclusive, a gente tem que fazer uma solicitação a esta Casa e ao próprio Estado que a gente possa tombar tudo.
O caso mais antigo aqui do Rio de Janeiro é o do Carlos Ramires da Costa, que desapareceu em Laranjeiras, em 1972. Fez, agora, 50 anos de desaparecimento. O caso do Carlinhos e o da Priscila Belfort também estão no nosso cadastro e vão ficar lá. Eu acho interessante não é só colher o exame de DNA, a gente tem que entender que a responsabilidade é de todos, e o Estado tem que se fazer presente nesse momento.
Independente de Estado ou não, a nossa fundação, na realidade, tem esse reconhecimento e esse entendimento: somente sairá do nosso cadastro, quando tiver a localização dessa criança, desse adolescente ou desse jovem. Temos hoje em torno aqui de 70 crianças, ainda desaparecidas. Mas temos aqui também adolescentes e jovens que já completaram a maioridade. Eu tenho que buscar o cadastro: de 4.312, já tivemos 3.722 localizações e hoje temos 607 crianças e adolescentes jovens, até porque já completaram a maioridade. Somente em 2023, até a presente data, já tivemos 102 casos. Estava aqui com 98, mas já tem 102, sendo que 87 já foram localizados. Infelizmente, a gente ainda tem um passivo de 13, 14 crianças ainda desaparecidas.
Mas a gente levanta aqui também uma questão interessante e que tem que ser colocada: infelizmente, a gente vem notando, já há alguns anos, que a questão não é só de Segurança Pública, mas social também dessas famílias. Com relação a essas crianças e adolescentes, um dado muito triste que a gente vem observando é que a maioria são conflitos familiares. E desses conflitos, resulta em fugas, resulta em situação de risco. Porque uma criança quando sai de casa, fica em situação de risco social e pessoal, trazendo uma preocupação imensa. Claro, que ninguém aqui é inocente, que aqueles que ainda não foram localizados, inclusive é difícil a gente tipificar desaparecimento forçado, até porque, quando são localizados, aí sim, a gente pode ter um estudo... Acho que o tempo já está concluído.
Por isso que eu lhe digo, Vereadora: essa temática tem que ser voltada com outra no seu gabinete. A gente tentar utilizar algumas estratégias, para que a gente possa fomentar e fazer uma política de garantia de direitos dessas crianças, dessas pessoas que estão desaparecidas.
Eu acho que a gente pode contribuir muito, como o André, a Inez, todas essas pessoas que estão envolvidas, o Lucas, pessoas que produzem conhecimento. Eu quero ficar aqui disponível. Claro, não dá mais tempo, mas a gente tem um vídeo aqui só para mostrar a eficiência da questão da divulgação. É a divulgação que traz, para a gente, a maior resposta desses processos de investigação, pelo menos social nossa, que tem mantido um retorno satisfatório. São as redes socais de hoje, como o Facebook, Instagram, que têm tido uma entrada muito grande nas redes sociais.
Muito obrigado, Vereadora. Eu estou aqui sempre à sua disposição. Obrigado porque todos estão presentes aqui.
A SRA. PRESIDENTE (MONICA CUNHA) – Senhor Luiz Henrique, eu que lhe peço desculpas, porque é isso, temos que entregar a sala. Tem essa situação burocrática que esses castelos nos colocam. Enfim, eu acho que eu já estou burlando demais só de estar aqui dentro e fazê-los nos ouvir, mas também não posso deixar o dia inteiro, porque se eu pudesse, eu deixaria mesmo.
Mas, como foi seu início de fala, eu já anotei e a minha equipe, eu acho que deve ter todos os contatos, mas nós vamos fazer uma primeira reunião. E aí marcar com o senhor, o Senhor André, do MP, o Senhor Luiz, vamos ver a delegacia que tem, de desaparecidos, e a Defensoria que também foi convidada, mas por algum problema, enfim, não veio.
Eu concordo plenamente com o senhor: essa conversa não esgotou aqui mesmo, de maneira alguma. A gente não pode fazer como esses órgãos, e aí dando nome e sobrenome, o Estado brasileiro e o Estado do Rio de Janeiro vêm fazendo. Toma certidão e ponto. Não, aqui a gente não vai fazer assim, não é uma escuta, todo mundo já soube, todo mundo ouviu, então, agora um abraço. Não, não vai ser assim.
A gente vai dar continuidade. Claro que quem me dera poder dar continuidade achando todas essas pessoas, ou tendo pelo menos noção de verdade onde elas estão, começando por Acari. Isso não vai ser possível, mas o que vai ser possível é a gente pensar em projetos de lei, enquanto aqui eu estiver junto com vocês. Isso com certeza é possível.
Eu sozinha não posso pensar, só nós juntos podemos fazer isso. Então, muito obrigada, e eu lhe peço desculpa por ter que terminar assim.
Aqui dou por encerrada mais uma escuta da Comissão Especial de Combate ao Racismo, agradecendo a todos e todas pela presença, a quem ficou ouvindo até essa hora. E até a próxima. Muito obrigada.
Está encerrado o Debate Público.

(Encerra-se o Debate Público às 13h01)